O Fernando no café

Fernando Lemos nasceu em Mangualde, cumpriu o serviço militar em Lisboa e por cá ficou. Na tropa tirou a especialidade de condutor-auto, o que lhe abriu a oportunidade de trabalhar nos transportes públicos.

Entrou para a Carris como cobrador e mais tarde, após mais uns exames, passou a motorista. Hoje quase a reformar-se e com muitos quilómetros no pêlo e muitas histórias passadas, ao longo de uma vida agarrado ao volante. Umas serão verdade, outras com floreados para animar, mas outras que me desculpe o Fernando, por tão incríveis, serão anedotas.

É no café onde nos encontramos às voltas com um favaio que o Fernando se lembra de alguma situação da sua vida e me conta, sabendo de antemão o prazer com que o ouço, ao descrever situações passadas mais ou menos caricatas, passadas nos transportes públicos.

- Pois é meu amigo, quando ele me apontou a naifa ao pescoço para eu não avisar os passageiros da entrada de dois carteiristas no autocarro, vi naquele instante, a minha vida a andar para trás. Tive uma sorte que ainda hoje me interrogo como é que ele não me cortou. O que é certo, é que após a travagem forçada, quando o Fiat Uno sem respeitar o sinal se atravessou à minha frente, o gajo foi projectado e foi marrar bem no meio daquela chapa, ao lado de onde faço os trocos, na venda dos bilhetes. Os outros mânfios foram abarbatados pelos passageiros, que os desancaram sem dó nem piedade, quando alguns descobriram que as carteiras já tinham mudado de dono. Por sorte a polícia apareceu depressa, senão o “mãozinhas” e os outros dois, estariam a assaltar carteiras no inferno.

- Ó Fernando isso foi mesmo assim? – Pergunto em tom de dúvida.

- Não!.. Foi pior. Foi uma confusão dos diabos, com gritos e berros que eu estive vai-não-vai para abrir as portas e deixa-los fugir… mas já lá vai.

- Essa situação da travagem brusca, faz-me lembrar um episódio com um colega seu, na carreira do 27. - Comenta o Diamantino, um alentejano amigo de animar a conversa, sempre com uma história na manga, para as diversas situações.

– Então ali na Junqueira, entrou um bêbado que começou a chatear o condutor. Cambada de cabrões…Cambada de cabrões. Repetia o bêbado num tom cada vez mais alto. O motorista já aborrecido disse: ó homem cale-se lá com esse palavreado que ofende os passageiros. - Não calo porque são uma cambada de cabrões e você também é. O motorista passou-se da cabeça e fez uma travagem brusca que atirou com os passageiros ao chão, criando uma confusão tremenda.

Desvairado, o motorista agarrou o bêbado pelos colarinhos e gritou: diz-me cá agora quem são os cabrões! Diz!..

- Agora!.. Agora já não sei… você misturou-os todos.

Uma gargalhada geral ecoou no café, afoitando o Diamantino, num tu cá, tu lá com o Fernando, contando histórias, para animar a malta.

- Bom!... mas essa, é anedota? – Comento.

- Isso é que eu já não sei, mas quem ma contou foi o Chico Lérias que também trabalha na Carris.

- Ah pois! Pessoal da Carris, caçadores, pescadores e outros mentirosos.

- Largou o Zé Luís, em tom zombeteiro.

- Haja respeito pela mesa…quer se dizer, pela digna arte de quem dá o melhor de si, para animar este lúgubre estabelecimento de sequiosos. – Desta feita, foi o Indiano, sempre entretido a ler um livro e fazendo render quase toda a manhã o cálice do Porto, que deu um ar da sua graça.

- Lúgubre senhor Lobato? Com a animação que o senhor empresta a esta casa? Sentado aí horas e horas a ler sem dar palavra. Chamar lúgubre é uma injúria de lesa-majestade. – Gracejou o dono do estabelecimento, Zé Luís.

- Bom!.. Mas é como vos digo, já apanhei de tudo, cagaços de arrepiar, arrelias com passageiros, uns malcriados a pensarem que podem dizer tudo ao motorista, zaragatas, roubos, problemas no trânsito, gente que refila por tudo e por nada, enfim um inferno. Bem…inferno, inferno, também não, se fizermos as contas, se calhar tive mais coisas boas do que más.

A conversa estava a escorregar para o “ai de mim” e tive que o interromper.

- Ó amigo Fernando, você tão amigo de contar uma laracha e lembra-se tanto das coisas más. Já eu, esqueço com facilidade os trambolhões que dei, mas não me esqueço das coisas boas, como os petiscos e uma boa risada para descongestionar. Pense positivo, porque as dores passadas não doem.

- Tem razão, até porque foi no autocarro que conheci uma sirigaita refilona, que à força de tanto me azucrinar, se tornou na mãe dos meus filhos.

- Vocês não se querem candidatar às noivas de S. António? – Era novamente o Indiano que agora lia o jornal. – Diz aqui que abriram as inscrições.

- Ó Lobato, você hoje está saído das cascas. – Comentou o Diamantino. – Isso é que era bom para si, pagam o copo de água e ainda lhe oferecem a lua-de-mel. Ó homem! Inscreva-se.

- Quem eu?

- Sim você! Você é o candidato perfeito: viúvo, casa posta, uma boa reforma e ainda cheio de genica…caraças! Mulher fosse eu, que quem casava consigo era eu.

A boa disposição desta conversa entre estes dois, fez com que toda gente prestasse atenção ao diálogo.

- Meu caro Diamantino! Sinto-me deveras enaltecido, com a sua proposta da possibilidade de juntarmos os trapinhos. Só que há aqui um porém.

- Diga Lobato qual é o porém, que talvez a gente dê um jeitinho.

- É que você está muito rodado e se bem me lembro, as noivas candidatas, tinham que ir puras, tal como nasceram.

- Isso era dantes, agora até podem levar os filhos a servirem de padrinhos.

- Mas eu gosto à antiga.

- Não seja por isso, porque há remédio para resolver essa coisa. A pedra UME.

- Pedra Ume? – Comento, enquanto vou limpando os olhos de tanto rir.

- Sim! Pelo que me contaram, a pedra serve para simular a virgindade. Conta-se que certa menina seguindo o conselho da mãe, dissolveu o pó da pedra ume, num copo com água, para colocar sobre a coisinha, momentos antes do acto na lua-de-mel. A adstringência da pedra faria fechar o buraco, simulando a virgindade. A moça esqueceu o copo com a mistura sobre a mesa-de-cabeceira e foi à casa de banho. Ao lembrar-se, voltou a correr mas encontrou o copo vazio. Aflita perguntou ao noivo o que acontecera à água do copo.

Ao que ele respondeu com o biquinho bem fechado: BIBI TIDI!!!

Alguém ao passar na rua gritou: - Está tudo grosso ó quê? – Tal foi a explosão de gargalhadas que entoou no café.

- Vocês dão-me cabo do negócio. – Gargalhava o Zé Luís. Olhando para o café entornado na bandeja com as convulsões do riso.

- Amigos! Ouçam só mais esta, passada no meu veículo, à coisa de um mês. Eram p’ra aí umas sete horas da manhã, quando uma madame entrou no autocarro. Era nova, bonita, bem arreada e de nariz empinado. Depressa se fez notada, pois destoava pelas maneiras emproadas e ares de mandona.

- Ó senhor motorista! Onde é que me posso sentar? – Perguntou após comprar o bilhete.

- Deu-me vontade de rir perante a petulância da fulana, mas educadamente, respondi que se podia sentar em qualquer lugar vago.

- Mas como? Se os lugares estão todos ocupados…

- Não lhe liguei concentrado na condução. Porém continuei a ouvi-la.

- Será que não há cavalheiros neste veículo que me cedam o lugar?

Sem resposta, virou-se para os bancos reservado a pessoas idosas, mães com bebés ao colo, deficientes e grávidas.

- A senhora não poderia ceder-me o seu lugar? – Pergunta ela a uma senhora, sentada nesses lugares reservados.

A interpelada, olhou-a de alto a baixo e perante a insolência dada a diferença de idades, respondeu. - Ó minha cara senhora, se fosse mais velha do que eu com certeza lho daria, mas com esse corpo… tenha a santa paciência.

- Mas eu estou grávida!

A outra desconfiada, pois não lhe notava barriga alguma, perguntou.

- Está grávida há quanto tempo?

- Prá aí há uma meia hora…Ai! Ai!.. até ainda me sinto cansada.

Com este remate deixando o pessoal a rir, o Fernando, foi a correr para casa, pois como ele disse, já tinha a sua Margarida, com o rolo da massa à espera.

António Correia

Lorde
Enviado por Lorde em 24/01/2013
Reeditado em 26/01/2013
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