Aconteceu
           no século passado

  
1. Ela não era uma boa crônica mas eu gostava dela.  Por isso, custei muito a aceitar o que lhe acontecera. Sem  me alongar, conto, acho que pela vez primeira, a sua história.
  2. Seguinte. Terminara de escrevê-la, e, de repente, ela desapareceu. Estranhei porque 
eu guardava, com cuidado e com carinho, tudo o que saía da minha incipiente pena. Eu estava começando a cronicar.
  3. O tempo foi passando. Um dia, mexendo nos meus arquivos escondidos, dei com a tal crônica, amarelada e cheirando a nafitalina, no fundo de uma pequena caixa de madeira.
  4. Apaixonado por uma bonita cearense - ela tinha 19 anos e eu 20 -,  resolvi mostrar-lhe a dita crônica, que falava muito sobre mim. 
  5. Ela leu minha crônica como se a estivesse saboreando. Depois, pôs a frágil mãozinha no queixo, e, entre um sorriso e um beijo, sussurrou:  "Adorei!..."
  6. Aproveitando-se de um cochilo do cronista apaixonado, que fez ela: apoderou-se da minha crônica, escondendo-a em um lugar que, até hoje, não sei bem dizer qual. Acho que por entre suas macias e provocantes coxas...
  7. Terminamos o namoro. A menina se foi. E na sua bagagem levou a minha crônica...  Senti bastante. Em três laudas, como disse, eu havia traçado o perfil de um ex-seminarista franciscano deslumbrado com o que via e com o que lhe acontecia fora dos claustros. Um depoimento interessante e valioso.
  8. Tentava pegar no sono - meu relógio de cabeceira marcava  meia-noite - quando o telefone chamou. Atendi. Era um  amigo dos tempos de patuscada. Sôfrego, ele foi logo me dizendo:
     - Você se lembra de Fulana? Sim, ela mesma.
     - Que houve com ela? Morreu?
     - Não, acabou de casar.
  9. Em seguida, me deu o nome completo do marido e o  local onde o casal passava a lua de mel. 
  10. Meio desapontado, bati o telefone, voltei ao travesseiro, e adormeci pensando nela...
  11. Acordei antes do sol nascer e decidido a  pedir-lhe minha crônica de volta. Sabia que, concretizado o seu casamento, desaparecia a chance de um "reencontro" que, em horas de encantadores devaneios, eu admitira ainda possível. Que fiz: enviei-lhe um bilhetinho delicado.
  12. A resposta só me chegou um mês depois.
Perdoei a demora. Não se interrompe uma lua de mel por um motivo qualquer. E ela: "Sua crônica? Eu rasguei..."
  13. Embora  admitindo não ser verdade, me deu vontade de lhe enviar outro bilhete, renovando o o pedido, agora desaforado. 
  14. Em tempo me lembrei que, rompido o nosso namoro, ela, quase chorando, pedira, dezenas de vezes, que lhe devolvesse o seu retratinho: um três por quatro, em preto e branco, com uma carinhosa dedicatória.
  15. E eu, irreverente, lhe respondia, com um cinismo sem limites, que o havia perdido... o que, a rigor, não era verdadeiro.
  16. Desisti, claro, de mandar o bilhete malcriado. Não tinha como justificá-lo. E dei minha crônica como irremediavelmente perdida.
  17. Atenção: para não despertar ciúmes, juro, com a mão sobre a Bíblia, que tudo o que acabo de revelar aconteceu no século passado. 
  18. Não sei por onde anda Fulana... Dela, ficou-me seu sorriso... E pergunto: será que ela ainda guarda a minha crônica?

 

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 12/03/2007
Reeditado em 22/09/2019
Código do texto: T410258
Classificação de conteúdo: seguro