“O que é do homem, o bicho não come”




 
                        Já havia notado o semblante pesado, pela televisão,  por duas vezes, do nosso ator  de teatro Walmor Chagas. Um artista duas gerações na minha frente, bem mais velho, mas que sempre me chamou a atenção depois que passei a frequentar teatro no Rio de Janeiro, na década de 60 em diante. Sim, os artistas parece possuírem uma antena escondida, de onde conseguem captar o  invisível, aquilo que nós simples mortais não enxergamos.
                        Com um porte elegante e presença marcante nos brindava com atuações de gênio,  tanto no teatro, como na televisão e cinema . Tinha uma vasta cabeleira grisalha que atraía e conquistava os olhares femininos. Trabalhou e parece que ajudou a fundar o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).  Mas não estou aqui pra fazer sua biografia, nem teria dados para tanto.  Estou aqui impressionado em ter percebido o cansaço existencial do ator, que se refletia claramente em seu rosto profundamente enrugados.
                        Nas suas últimas entrevistas, ele exalava esse tédio, esse cansaço de viver. Ele era viúvo da maior atriz brasileira Cacilda Becker há muitos anos. Contracenou com os nossos maiores do teatro:  Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Italo Rossi e tantos outros.
                        Recordo-me agora que uma artista de novelas, que havia sido esposa do Walmor na trama da novela, propôs ao ator casar com ele, já que na novela se deram tão bem. A recusa foi imediata:  “Não, minha amiga, casamento é muito chato”.  Soube agora que ele era muito franco e não deixava por menos quando serviam uma comida mal feita para ele. Dizia, na lata: “ mas esse macarrão está péssimo,  está duro...”
                        Adorei saber disso, pois essa franqueza, se bem dosada, ela é necessária e nos dá assertividade, como diz a psicologia. Nunca precisei tanto nestes meus últimos tempos de ser mais assertivo...
                        Na velhice, foi perdendo a visão e não estava mais se sentindo bem.
                        Os problemas da vida incerta, com o enigma da morte se aproximando. As cicatrizes dos seus maus momentos, as pequenas e grandes traições que por certo aguentou, como acontece com todos nós, tudo isso por certo fiquei imaginando ao ver o rosto forte e carismático do grande Walmor. E nessa hora, perdendo a fome da vida, que se esvai, não adianta muito  filosofar , por isso entendo, ou procuro entender o suicídio do ator.
                        Claro, fosse eu amigo dele, estaria tentando animá-lo, com frases feitas para essas ocasiões:  “amanhã é outro dia”;  “resta sempre a esperança”; “a morte não existe”. Mas como disse outro dia o irreverente Jabor, este sim, da minha geração, de uma rabugice deliciosa, dissertando sobre a morte saiu-se com essa: “grandes merdas”.  Nada disso adianta diante da morte, que zomba de todos nós e esse grande enigma continua insolúvel.
                        Meus amigos e amigas, estou há quatro dias “arriado” na cama com dengue e num estado desses, nosso ânimo não é bom e por isso a crônica parece conter um pouco de amargor, porém  tudo é motivo para estar junto da minha gente. E ainda mantenho a minha esperança através da frase com que encerro a conversa de hoje.
                        Por amizade e gratidão aos seus personagens, que em alguns momentos me ajudaram a "psicanalisar" minha vida, deixo minha recordação do ator. Se eu estivesse ao lado do Walmor,  ainda tentaria uma frase de efeito, que vi pronunciada muitas vezes por um grande amigo, que sempre que procurado por um aflito, ouvia pacientemente as queixas dele e  se despedia assim:  “Vá, meu amigo, vá pra casa, lute, defenda-se, não perca a coragem  e lembre-se sempre:  o que é do homem, o bicho não come...”