Um jardim feito a duas mãos

Eles caminham pela praia, em silêncio. De vez em quando seus braços se tocam e eles voltam a se afastar, não sem antes tocarem as mãos. Poderia se dizer que eles estão ensaiando um movimento de se tocar e concluirão enlaçando os dedos.

O sol tira faíscas dos grãos de areia e dos cabelos dela. Ele olha pra areia e pra os cabelos dela e pensa no que os levou ali.

Ela olha pra os maçaricos que dão seus passinhos corridos na areia, em busca de alimento e se pega pensando no caminho longo que eles fizeram atravessando continentes pra chegar ali. Como ela, atravessou dores, perdas e agora está nessa praia como os passarinhos.

A conversa é feita de pequenas frases, silêncios, reminiscências e eles pensam em quando falarão o que querem.

Crianças jogando bola ao longe, desfazem aquele clima de ensimesmamento e os gritos atravessam o ar quebrando alguma coisa. Ela sacode os ombros, num gesto de impaciência que ele conhece tão bem.

Parecem estranhos agora, e ele se sente desajeitado. Resolve agir e num impulso, vomita as palavras que lhe ferem a garganta.

Porque tu foste embora?

Não tinha nada pra mim aqui. - ela se defende sentindo no mesmo instante que fala, que não devia ter dito isso.

E eu?! E nós?! - ele estaca e ela se volta abruptamente, enquanto eles se encaram.

Não 'tou falando disso. Falo de trabalho. Falo de mim, do que eu gosto.

Sempre 'mim', 'meu', 'eu'. Nós tínhamos planos.

Teus planos – ela quase grita.

Nunca disseste que eles não te interessavam – ele rebate espantado.

Ela sabe que está tudo errado. Disse as coisas de forma inadequada. Incrível que ela sempre tão articulada, tão clara na profissão, com ele não soubesse nunca falar. Se perdia. Se sente cansada, teme terem perdido uma oportunidade. Voltou pensando nele, viu uma chance deles se entenderem e agora ela parece perdida. Tem um lampejo; se cala com medo de continuar pondo tudo fora, pois sabe que eles querem esse retorno e já viu o suficiente pra saber que não abdicará dele de novo.

Vamos lá em casa, eu tenho um serviço pra fazer no jardim e pensei nos velhos tempos...

ele olha pra ela como se vindo de muto longe e tenta decifrar o que vê naqueles olhos. À luz clara dessa tarde, só vê um rosto muito amado erguido pra ele num pedido mudo. Sente-se desarmar.

São sementes ou mudas?

Mudas.

Eles retornam desfazendo as marcas na areia. Os ombros se tocam, ele roça a mão dela e ela aproveita pra pegar a mão dele. O sol se pondo devolve o desenho de um casal de mãos dadas. De repente o tempo para. São de novo dois adolescentes sem preocupações, namorando na praia. Olha pra ela e sabe que ambos pensam a mesma coisa. Isso nunca se quebrou entre eles.

Entram no pequeno jardim e ele vê uma fileira de mudinhas de ervas e flores, a um canto.

Isso só tem graça contigo. Desde que saí daqui, eu nunca cultivei uma flor sequer.

Ele olha pra ela sem saber se isso era força de expressão ou verdade literal.

Vou repetir pra que tu entendas. Nunca tive um vasinho na janela, nesses dez anos que estive fora. Me parecia estranho, traição. Todos os jardins que tive eram plantados por nós. Ninguém poderia fazer isso comigo, e sozinha eu achava que as plantas não floresceriam.

Ele fica mudo olhando pra ela. Sabe que tudo que ocorreu de ruim, toda falta, toda raiva, toda saudade é suplantada pela declaração dela. Vale mais que qualquer outra frase melosa.

Desde pequenos, ainda crianças vizinhas, eles adquiriram o hábito de fazer jardins juntos. Cresceram, namoraram e continuaram a cultivar jardins. Na casa dele, na casa dela, no campus da faculdade, no parque defronte a sua casa. Era um acordo tácito, um pacto não verbalizado, que se tornou um ritual de amor, onde não eram necessárias palavras.

E agora saber que ela nunca vivenciara isso com outros e ele de repente percebeu que nesse tempo, ele também abandonara qualquer paixão botânica.

Tudo se faz claro, eles não precisam falar mais. O tempo se encarregará e eles falarão à medida que estiverem prontos, sem ataques. As arestas serão desfeitas enquanto podam galhos, enterram mudas, molham as plantas.

Ele nota que ela já arrancou as ervas daninhas, mas deixou duas pás pra eles revolverem o solo.

Uma mudinha de alecrim pra perfumar a relação, uma mudinha de sempre-viva pra comemorar a longevidade desse amor, uma mudinha de hortelã pra suavizar o amargor da recente conversa, uma mudinha de jasmins pra embelezar suas vidas...

Cai a noite e eles continuam ombro a ombro plantando um canteiro belo e perfumado, um reinicio de vida.