Um noivado no agreste
1930. Seca costumeira varrendo o sertão. Fazenda perdida em meio ao agreste.
Ela está na varanda com o bordado no colo. De olhos semi cerrados, meio que cochila, enquanto a mente vagueia.
Naquele sol inclemente e sob aquele céu duramente azul, que passa uma ideia de vidro, nada se mexe aquela hora. Hora da sesta, em que todos buscam uma sombra, e ela se balança preguiçosamente, tentando terminar aquele bordado.
Um ou outro réptil passa ligeiro no terreiro, em busca de uma pedra para aquecer-se e ela entreabre os olhos, com o ruído de folha seca voando. Ao longe, tremeluzindo na linha do horizonte, vê uma figura fugidia a cavalo. Cisma quem seria capaz de andar naquele horário em pleno sertão.
Só pode ser um viajante, ninguém da terra. Ela volta a olhar e na distância imensa, percebe que ele bem bem devagar, na certa pra poupar o animal. O calor faz-lhe fechar os olhos e ela dormita levemente, sabendo que a figura, uma miragem, acima do chão de onde sobem ondas de calor, não aportará no terreiro em menos de meia-hora.
Sacode as mãos pra afugentar uma mosca que zumbe no ar pesado.
Os minutos passam e ela volta a olhar a figura que se aproxima lentamente. Torna a fechar os olhos e sente o bordado escorregar das mãos. Curva-se pra apanhá-lo e ouve o chiado da porteira lá no limite do terreno, ser aberta. O cavaleiro chegou.
Ela se espanta e chama alguém de dentro de casa. O menino que cuida dos animais vem e ela pergunta-lhe se conhece o forasteiro. Não, é desconhecido. Ela torna se perguntar quem seria e ele já se aproxima da casa grande. Tem uma arma atravessada no colo e está com gibão e chapéu de couro, além de alforges em cada lado da sela. Aproxima-se do alpendre, tira o chapéu num gesto delicado e com a arma ainda no colo, cumprimenta e pergunta se pode apear.
Ela permanece muda, sabendo de sua condição estranha de mulher só, e proprietária de terras naquele lugar ermo e tão masculino.
Ele mantém-se inalterável na sela. Poderia ser um só com o animal que monta, tal a sua postura.
Ela manda chamar o administrador pelo menino, enquanto uma velha empregada aparece na porta. Pede água pra o visitante e diz-lhe de seu espanto em ver uma visita naquela hora e tão fora de roteiro.
Fala com voz pausada, deixando claro sua postura de senhora do lugar. Ele permanece tranquilo, a olhá-la de modo respeitoso e diz que o padre mandou-o lá.
Só então, ela entende aquilo. Baixa os olhos, alisa os cabelos onde um ou outro fio branco já aparece e levanta-se de repente agitada, enquanto manda-o entrar e sentar.
Ele curva-se novamente numa mesura desajeitada e com o chapéu na mão, entra.
A água chegou, ela pede a empregada que mandem buscar o cavalo do visitante pra dar-lhe água e senta numa cadeira mais afastada. Pedindo licença, ele senta-se e começa a falar do tempo, calor, distância...
Não foi isso que o trouxe ali, mas ela sabe que nenhum dos dois sabe como começar o assunto. Ele pigarreia, pede-lhe licença pra fumar, ela concede e de repente aí, encontra um jeito de iniciar o diálogo.
É o mesmo fumo que meu pai usava... sempre gostei desse cheiro, parece com ele, que Deus o tenha.
Que bom a senhora não estranhar, fica mais fácil...
Ela cora e sabe que entraram no assunto que o trouxe ali. O silêncio se instala de novo e nenhum dos dois sabe como reiniciar a conversa.
Ele pigarreia com os olhos fitos na paisagem e ela tenta retomar seu bordado, sabendo que aquilo não pode durar muito, já que precisam falar. Ele roda o chapéu nas mãos e ela sente um alívio, até vontade de rir da falta de jeito dele.
Padre Antônio me falou do senhor.
Ele também falou da senhora, do lugar... somos vizinhos, sabe?
Não diga... - ela sabe que soou artificial mas precisa falar pra encontrar a língua.
Ele não parece mais à vontade que ela. Que alívio. Detestaria se ele fosse um falastrão, afinal naquelas lonjuras, silêncio é algo familiar e seus contatos sociais mínimos se dão após as missas de domingos com as velhas amigas da mãe. Nada sabe do resto. Sua vida é ali, dando aula pras crianças da fazenda e tratando da administração da terra. Traquejo social inexiste, tudo é muito econômico.
Ele roda o chapéu nas mãos e ela sente um alívio, até vontade de rir da falta de jeito dele, mas ele tem que desatar...
Como que adivinhando os pensamentos dela, ele a olha de frente e diz rápido, como se tivesse medo de não conseguir falar de novo.
A gente deveria tratar do assunto, a senhora quer perguntar algo?
Pronto saiu, ele respira ruidosamente e ela finge estar muito entretida no bordado, mas sabe que precisa dar continuidade aquilo. Encontra a voz, que parece estranhamente aguda.
Seu Lucio, eu não tenho contato com homem aqui, e vivo rodeada pelo povo que trabalhava pra meu pai. Não sei como se dão essas coisas, mas acho que devíamos conversar, nos conhecer um pouco...
Ele assente e diz que entende, mas é homem de pouca conversa e que ela pode saber da vida dele, na vila, pelo padre, nos armazéns das redondezas.
Ela abre a boca pra retrucar, mas percebe que não sabe o que dizer, embora não concorde com aquela postura. Reinicia o bordado, enquanto ele arrasta a bota no chão, parecendo impaciente.
Dona Teresa, a gente vai ter tempo pra conversar. Posso vir visitar de tardinha, assim a gente ia ter um tempo pra trocar ideia, eu não sou muito bom nesse tipo de papo, mas posso lhe dizer que estou agradado do que vejo e me interessei muito pelo que o padre me falou.
Pronto, saiu. Ele engole em seco, sabendo que foi o máximo que poderia dizer. Ela fica espantada, mas se agrada daquilo, foi na verdade uma audácia dele. Aquilo beirou uma declaração e foi o mais próximo que ela ouviu nesses trinta anos de vida. Ela aquiesce e sabe que assim será. Um namoro que começou invertido, pois na situação atual, sob as bênçãos do padre, eles já estão prometidos.
Ele se levanta e ela sabe que a entrevista acabou. Ele se curva e ela estende-lhe a mão. Ele a cumprimenta e numa atitude ousada diz que suas mãos são macias. Ela puxa a mão rapidamente, mas sorri, percebendo que ele iniciou a corte. Combinam tardes de conversa na próxima semana. Ele saiu, de chapéu na mão, monta e esporeia o cavalo, enquanto lhe dá um sorriso delicado, que ela recebe como declaração de amor.
A velha empregada, que a criou, vem juntar-se a ela na varanda e diz que gostou do moço. Sisudo, direto e bem apessoado, sem falar que com a recomendação do padre, não podia ser coisa ruim.
Ela o segue com os olhos, e se pega pensando nas historias que lia na infância e adolescência.... príncipes, princesas... aquilo não lhe pareceu com nada lido, mas nessas paragens, contos de fada só servem pra distrair mocinha e afinal aos trinta e dona de uma grande propriedade, era melhor ter alguém com ela.
Seja como for, ela gostou da presença dele. Começa a pensar na roupa que vestirá no dia da próxima visita, afinal hoje ele a pegou de surpresa e ela estava desarrumada, mas notou o olhar satisfeito dele.
É, está namorando. É questão de dias pra ele trazer o anel de noivado. Se sente estranhamente alegre.
No próximo domingo, haverá na missa uma alusão a esse noivado. Conhece o velho padre Antônio e sabe que ele fará isso, e as velhas comadres da mãe virão falar de enxoval.