LEMBRANÇAS 8
Enfim o dia da primeira responsabilidade. Já tinha seis anos . Estava brincando com a Solange. Ela tinha brinquedos lindos e bonecas maravilhosas, mas só brincava comigo se eu a deixasse ficar com meu boneco Glu-Glu. Era ele todo de plástico vermelho e parecia um bebê. A gente colocava água na mamadeira grudada em sua mãozinha, ele mamava e depois a água voltava todinha para a mamadeira. Mágica! Um desses presentes de natal que a Casa da Esperança proporcionava. Gostava da Solange e não me importava em dividir meus brinquedos. Ficava era feliz com a companhia dela. Apesar dela ter roupas bonitas, viajar nas férias, ou ganhar presentes no natal, quando estávamos juntas nada disso aparecia. Éramos duas meninas felizes e as horas se passavam conosco nos misturando como se nossas diferenças não contassem. Essa é a dádiva de ser criança.
Chegou minha mãe e acabou com a brincadeira. Limpou meu rosto e minhas mãos com um pano molhado e me levou para a escola. O diretor, "seu" Jonas era dócil e compreensível. Não foi difícil convencê-lo fazer a matricula "daquela menina tão linda". Passou a mão no meu rosto descendo para o queixo dizendo "uma menina tao bonita não vai deixar de estudar por falta de vaga". Deu-me até um presente. Foi assim que fui para casa com minha vaga garantida e duas escovas de dentes.
Fiquei na classe fraca com a turma da Dona Dulva. Meu primeiro dia de aula foi angustiante. Só conseguia pensar que estava sozinha, sem meu pai. Veio um grande no na garganta que não se desfazia em lágrimas por morrer de vergonha das outras crianças. Fiquei isolada e nem podia mesmo participar do recreio. O único jeito de sair da carteira da sala de aula era se alguém me pegasse no colo. Não tive voluntários. Fiquei com muita raiva por terem me colocado perto dos meninos.
Quando vi meu pai na porta o céu se abriu e já estava em seus braços quando a professora o abordou: "eu conheço essa menina". Aquele meu herói voltou-se para ela com toda simpatia que lhe era peculiar e ouviu "vi vocês dois na televisão, no programa da Dercy Gonçalves na no canal 5". Verdade, naquele ano nos havíamos recebido uma doação do meu primeiro aparelho ortopédico. Foram meses de viagens constantes a Rua das Palmeiras 311 e à AACD para negociações, consultas e tiradas de medidas até, finalmente, depois de ouvir o Padre Zezinho cantar, lá estava pai e filha no palco recebendo a doação. Eu, completamente dura, enfiada naquele monte de ferros com duas muletas em baixo dos braços. Sentia-me um poste escorado. Engraçado, além dessa minha professora ninguém mais tocou no assunto. Ela ainda falou "mas essa menina é muito séria. Por que você não mandou um thauzinho, assim?" Enterrei o rosto no ombro de meu pai. Puxa vida! Não dei thauzinho porque não quis! Foi com essa professora que aprendi ler e escrever minhas primeiras palavras.
Logo passei para a sala ao lado – mais forte- com a Dona Jandira. Ela mostrava umas palavras escritas nuns cartazes e eu não entendia nada. Repetia o que os outros alunos liam. Ainda hoje não consigo entender como passei a ler "corrido". Nessa classe havia uma menina um pouco mais velha que eu, com uma cabeleira preta enorme, amarrada num imenso rabo de cavalo. Era linda com a pele muito branca e todos eram apaixonados por ela. Vivia sorrindo e era o xodó da professora que sempre dava versos pra ela declamar nas apresentações. Como ela conseguia andar sozinha com aquele aparelho? Eu sentia muita dor e os médicos diziam que precisaria de mais cirurgias. Meus desvios ósseos se agravavam com o crescimento. Como meus pés ficavam em bolhas fui abandonando o aparelho até chegar na idade de novas cirurgias.
No segundo ano primário a coisa piorou. Se já era uma figura estranha, Deus dessa vez caprichou. Nasceu um dente pontudo entre meus dois incisivos superiores. Era motivo das estranhezas dos adultos, quanto mais dos coleguinhas. Parecia mais uma ratazana ou um vampiro pela metade. Sorte que naquela época as crianças não assistiam muito televisão. Apesar de tanta vergonha que passei fiquei meio decepcionada ao vê-lo na ponta do alicate do dentista da escola.