LEMBRANÇAS 4

Fui levando minha vidinha de criança. Não sei se era uma vida normal porque nunca conheci outra. Em meio tantas provações tínhamos uma cumplicidade gostosa. Acho mesmo que era muito amor. Era arroz com feijão mais as verduras da horta. De vez em quando umas galinhas de quintal, nossas árvores frutíferas, um final de feira, e eu me sentia feliz. Minha mãe caminhava uns cinco quilômetros até a igreja matriz comigo num carrinho de bebê para pegar mantimentos até o momento em que nossa paróquia virou-nos as costas porque tínhamos televisor em casa. Só lembro daquele homem de vestido preto fechando a porta da cúria, deixando minha mãe para fora aos prantos. Isso obrigou-nos a fazer uma rifa. Perdi meu divertimento quando aquele homem barrigudo e careca veio num carrão buscar minha televisão . Ele nem falou que eu era bonita... Todo mundo falava! Chorei. Meu pai me consolou dizendo "mais tarde a gente compra outra". Esperei a tarde cair. A noite chegou e minha televisão no veio. Não seria minha última decepção.

Sobrevivi brincando com minhas bonecas. Era tão boa minha vida. Não tinha preocupações. Brincava no carrinho de rolimã do meu irmão Niquinho. A Maria Helena enfiava minhas pernas pela sua cintura e dava voltinhas comigo até a esquina. Nas tardes quentes quando saia voando aquele monte de siriris, a criançada da rua pulava no ar para pegá-los e trazê-los na minha mão. Um tempo que festa era a criançada brincando na rua. Festa era quando o trator passava e deixava pedaços de terra brilhando no chão e todo mundo corria para sentar em cima deles. Ai que vontade que dava de também pegar meu lugar brilhante... Via o trator raspando a rua com o meu desejo contido, retido, inatingível.

Em meio essa vidinha fiz minha primeira cirurgia de correção óssea.

sonia dezute
Enviado por sonia dezute em 19/01/2013
Reeditado em 30/03/2013
Código do texto: T4092904
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