LEMBRANÇAS 3
Já em casa, era como um trapo em cima da cama. Dormia e chorava com um só dos olhos. Minha avo dizia "povera bestia bambina". Um amontoado de pele e osso que não fosse pela respiração ninguém diria que estava viva. O dia que minha mãozinha deu sinal de vida foi festa para minha mãe. Ela havia pedido a Deus que me salvasse e, fosse como fosse, não se importaria em cuidar de mim para o resto da vida.
Enquanto eu recobrava algum movimento, meu pai também se recuperava de um de seus AVCs que lhe custou o emprego numa multinacional da borracha. Não havia as mesmas leis trabalhistas de hoje. Toda sorte de privações recaiu sobre nossa família. Minha mãe começou lavar roupa para outras famílias e meus irmãos vendiam alface na rua. Bem, a Maria Helena não, ela sempre voltava para casa com a bacia de alface sempre cheia. Ai os outros dois saiam e vendiam a parte dela também. Minha mãe sempre cultivou uma horta maravilhosa no quintal de casa e isso também garantia nossa mistura do dia a dia.
Meu pai ainda conseguiu um emprego numa multinacional de auto peças, até o dia que trouxeram-no para casa desmaiado. Dias depois o vi trabalhando numas madeiras montando uma caixa muito estranha. O resultado foi surpreendente; um carrinho de algodão doce que pedalava e exercitava as pernas debilitadas pela sequela do derrame. Às vezes desmaiava em cima da máquina ainda em chamas e por isso não tinha pelos no peito e nem sobrancelhas, mas possibilitou algum sustento para casa e a alegria da criançada da rua.
Eu não cabia mais no carrinho de bebê, então o espírito criador do meu pai se manifestou montando um caixote com as rolimãs do carrinho do meu irmão. Era nessa quase brincadeira que minha mãe me levava para a fisioterapia, um lugar onde havia muitas crianças iguais a mim. Foi ai que aprendi a engatinhar. Nem acreditava; eu estava andando! Meu Deus, ainda lembro o nome da moça que me ensinou: Marlene. Fiz também um tratamento com um japonês que aplicava uns aparelhinhos que faziam cócegas e vibrava o meu corpinho. Já levava o braço esquerdo a altura da cabeça e, de gatinhas, eu me sentia livre. Suja, porém livre. Fui criando uma casca grossa no joelho e sem nem perceber eu "pisava" por cima de pedras, pedrinhas e pedregulhos do quintal de terra. Muitas vezes constrangia as pessoas que não entendiam minha maneira diferente de caminhar. Não entendia nada do comportamento humano, então não me afetava. Estava muito feliz por já desafiar o trator e sentar no meu pedaço de terra brilhante.
Sonia Dezute