AMIGO IMAGINÁRIO

Sempre que mamãe saia, ele chegava. Gentil e sorridente. O amigo perfeito.

Desde que o conheci, nunca mais estive sozinha. Ele era o menino mais bonito e legal e o amigo mais sincero e dedicado que eu já tivera em toda minha triste infância.

Depois dele, foram dias de muitas brincadeiras e de muitas gargalhadas gostosas.

Um dia perguntei pelo seu nome, ele apenas sorriu. Desde então passei a chamá-lo de Risinho. Agora, passado tanto tempo, relembro e percebo que era dessa forma que ele respondia à todas as minhas perguntas, com um enigmático sorriso.

Assim passei um bom período da minha infância ao lado de um dos melhores amigos que alguém poderia ter. Meu querido amigo Risinho.

Lembro-me que na época que o conheci passávamos por grandes dificuldades em casa. Contava com apenas 6 anos de vida, era uma criança introspectiva, triste. Além de mim, havia mais nove irmãos, dois deles mais novos que eu. Eram gêmeos. Os restantes dos irmãos não permaneciam em casa quase nunca, dormiam nas casas das tias, pois foi o modo que mamãe encontrou de conseguir dar alguma educação e alimentação para todos. A vida naquela época, e naquela localidade, interior do Paraná, me parecia muito sacrificada, muito dura, muito triste.

Papai quase nunca estava conosco, bebia muito e quando chegava já a noitinha, estava irritado e cambaleante e muitas vezes presenciei panelas e copos serem atirados para cima da mamãe, que cansada de um longo e penoso dia na roça quase não tinha forças para dar conta de todos os afazeres domésticos.

O fogão de lenha muitas vezes servia apenas para nos aquecer. Mas o estomago continuava frio e vazio a noite inteira.

O pouco dinheiro que entrava, através do trabalho de bóia fria da minha mãe era utilizado para alimentar os irmãos menores, eu já era “ grande” minha mãe sempre dizia, poderia muito bem esperar o dia amanhecer para pedir alguma coisa de comer na vizinhança .

O dia que conheci Risinho eu havia chorado muito, os gêmeos, estavam meio adoentados e eu não sabia o que fazer ou o que dar para alimentá-los, havia muita mandioca e amendoim na nossa casa, me parece que tínhamos uma pequena plantação no quintal. Minha mãe como todos os dias saíra de madrugada , rumo à roça e só chegaria ao entardecer. Papai estava pela cidade, perambulando... bebendo.

Os gêmeos não queriam mais comer mandioca e amendoim, eram pequenos demais, queriam pão e leite... não havia.

Remexi o fundo da lata de vinte litros que vez ou outra papai conseguia encher com um leite coalhado que comíamos as colheradas e que também servia para mamãe fazer pequenas barrinhas de doce de leite, que era nossa alegria, nossa pequena festa, mas na lata nada mais havia. Os gêmeos gritavam e estavam inconsoláveis naquele dia, então sem saber o que fazer fui para o quintal grande da minha casa. Agachei ao lado do galinheiro vazio e chorei muito.

Queria pão também, meu estomago estava doendo e por mais que eu gostasse de mandioca não tinha mais como comê-las, então chorei como nunca havia chorado antes e meus soluços se misturaram aos soluços dos gêmeos, soluços desesperados que vinham lá do interior da nossa humilde casa.

Não sei por quanto tempo assim fiquei, acho que adormeci ao lado do galinheiro, porque acordei assustada com um risinho bem ao pé do meu ouvido. Um risinho suave.

A tarde já havia chegado. Dei um salto e corri para junto dos gêmeos, mamãe chegaria a qualquer momento e se os encontrasse sozinhos certamente o chinelo cantaria feliz na minha perninha magra.

Quando adentrei no primeiro cômodo, percebi que não estavam mais sozinhos, pensei que era a mamãe, mas era ele, o menino mais bonito e feliz que eu já vira e que seria dali em diante o meu melhor amigo por muitos anos.

Ele fazia graça para os gêmeos, dava piruetas ágeis no ar e fazia caretas engraçadas, os pequenos gargalhavam a cada nova brincadeira. Fiquei parada, meio zonza, num estado de quem ainda acorda ou começa a dormir novamente.

Assim que ele me viu correu e me puxou pelas mãos, disse que agora que eu havia chegado poderíamos brincar de roda e de inventar novas brincadeiras para alegrar os gêmeos até mamãe chegar. Segurei nas mãos dele, meio tímida, meio amedrontada, mas o medo aos poucos deu lugar a uma confiança e alegria que eu nunca havia sentido antes. Brincamos muito, eu, Risinho e os gêmeos. E a fome passou. E a tristeza acabou.

A partir daquele dia ao invés de chorar quando minha mãe saia para a roça de madrugadinha, eu a ajudava a ajeitar o lenço e o chapéu de palha na cabeça, ficava admirada dos longos e belos cabelos negros da minha mãe e da destreza e cuidado com que prendia toda aquela cabeleira num “coque” no alto da cabeça. Então muito “serelepe”, eu corria buscar seu “embornálzinho” encardido, que ela transpassava ligeiro no seu ombro e o levava a tiracolo para a roça, onde guardava seu fumo e sua panelinha de comida, quando tinha. E lá se ia ela, depois de mil recomendações com os gêmeos e com a casa.

Ficava intrigada pelo fato de mamãe nunca ter cruzado com Risinho pelo nosso quintal, pois mal ela fechava a porta atrás de si, ele a abria e entrava. E assim todo dia ele inventava mil brincadeiras e histórias engraçadas para nos fazer rir. Como ele passava o dia inteiro conosco eu sempre lhe oferecia o que íamos comer, mas nesse momento ele se afastava e dizia que daria uma saidinha para comer na casa dele e voltaria dali a instantes e sempre ocorria dessa forma.

Antes de sair ele me fazia prometer que comeria tudo e que trataria bem dos gêmeos para que não ficássemos mais doentes. Contou várias histórias sobre mandioca e amendoim, dizendo da importância dos mesmos na alimentação e um dia me disse que o segredo para ter os cabelos longos, negros e macios como os da minha mãe, que eu tanto admirava, era exatamente aquele tipo de comida que ela fazia questão de nunca deixar faltar na nossa panela. Acreditei.

Ainda hoje, acho que neste dia ele mentiu, pois meus cabelos nunca passaram do ombro e as cores negras dos sedosos cabelos da minha mãe nunca tingiram igualmente os meus que são de um castanho claro. O menino Risinho, meu pequeno grande e inesquecível amigo deve ter tido seus motivos para isso.

Dessa forma passei dias felizes. A vida aos poucos foi melhorando, papai já não bebia tanto e começou a criar galinhas e a vender os ovos para a vizinhança, então tínhamos mais comida na mesa e divertimento redobrado com as galinhas que cacarejavam assustadas e corriam quintal afora, quando eu, Risinho e os gêmeos tentávamos pegá-las, cercando-as pelo quintal. Entre risos e penas que esvoaçavam leves pelo ar, este meu pedaço da infância foi feliz.

Dois dos irmãos mais velhos passaram a morar em casa, então eu já não podia ficar o dia inteiro com Risinho, certamente ralhariam comigo se o vissem por lá. E Risinho compreendia isso e desaparecia ligeiro assim que alguém surgia.

Um belo dia papai disse que viríamos para São Paulo e arrumamos as malas, pensei que Risinho viria conosco, afinal ele estava sempre comigo, inclusive me acompanhou até o portão. Mas ele não veio. Apenas sorriu para mim com aquele seu jeito doce de ser e ficou acenando alegre e sorridente até que o caminhão de bóia fria que nos levaria até a rodoviária sumisse naquela estrada poeirenta como tantas outras do interior do Paraná.

Nunca mais o vi. Ainda hoje quando faço uma prece, agradeço por ter tido esse socorro celestial que certamente, aquele Amigo Maior, que não é imaginário, providenciou na minha vida na hora certa.

Saudade do meu amigo Risinho. Mesmo hoje quando , por algum motivo fico triste, lembro dele com saudade, mas não o chamo para me consolar. Cresci. Não sou mais a menina frágil e triste de outrora e consigo superar, mesmo sem o meu amigo Risinho, qualquer dificuldade que a vida me apresentar.

Penso que não devo chamá-lo mais, pois tenho certeza de que Ele deve estar ainda por lá, nos confins do Paraná, correndo alegremente atrás das galinhas e ajudando outra menina triste a ser feliz.