FAZENDA BELA VISTA, Uma saudade...

Há significativas coisas que ocorrem no curso de nossa existência que nem o tempo é capaz de apagar da lembrança: Uma irreparável perda, um grande achado, um momento de alegria um instante de tristeza. Qualquer um desses sentimentos pode deixar marcas indeléveis na nossa mente, e jamais serem suprimidas.

Sinto um ânimo dessa natureza, cada vez que passo frente à Fazenda Velha. Reluto, mas não tem como conter um pensamento instintivo que me transporta àquela doce aventura vivida há mais de quatro décadas.

É como um filme rebobinado a se projetar na minha mente, trazendo de volta aquele nostálgico casarão de alvenaria, com seu ar imponente. Fachada ampla de cor amarelada, com a varanda de colunas em arcos, interligadas por um baixo peitoril, parecendo, ali existirem os espectros dos vaqueiros, nosso exemplo de bravura e heroísmo se preparando para mais uma jornada no campo. Ou mesmo retornando de uma saga, patrocinada pela fúria de um boi bravo, em “pega” de morte entre novilho e cavalo num cenário infestado de cipoal, tucunzeiros e unha- de- gato.

A presença agradável de moradores da vizinhança como: seu Jaime, seu Raimundo Pedro, seu Livino, seu Bandeira, seu Afrísio. Este último, pai do comerciante Moacir do São Benedito. Relembro a passagem de alguns transeuntes, que nas cercanias da Cidreira costumavam encostar pra tirar um dedo de prosa com seu Cravo e dona Noêmia, encarregados da fazenda, sempre receptivos e gentis no acolhimento.

Ainda vejo pelo retrovisor do tempo, caravanas de cargas em lombo de animais a passar na estrada rumo à cidade. Tamanho eram os esforços daquela brava gente. Lavradores, roceiros, vaqueiros, tropeiros, viajantes. Cada um tocando seu destino, conforme a sorte que enfrentava.

À tardinha, após um dia estafante, com côfos na cabeça, uma a uma as quebradeiras de coco iam chegando, com o produto do seu labor, que vendidos por preços irrisórios ou trocados por mantimentos na barraca, como açúcar, café, querosene, serviam para amenizar as necessidades mais urgentes daquelas almas humildes, de pele castigada e mãos calejadas, que apressavam o passo, pois faltavam realizar a última tarefa diária: o jantar da sua cria.

Naquela fase de prosperidade, foram formando vários núcleos habitacionais no território da Data Monte Cristo, onde era instalada a fazenda Bela Vista, por iniciativa de seus proprietários Natinho e Dedeus, acolhendo inúmeras famílias de nordestinos retirantes da seca que passaram a viver naquelas terras na condição de agregados e foreiros. Povoados como: Natal (onde nasceu este autor), Nova Vida, Vale Verde, Promissão, Costa, na margem da Ma 247, e Claridade, Sapucaia, Mucura, Olho D’água do Zé Branco, Mamorana, Ipueira, Pindova, todas floresceram recebendo significativas levas de migrantes do nordeste que contribuíram com o desenvolvimento dessas localidades e formaram inúmeras famílias gonzaguenses, com quem costumeiramente convivemos em nossos dias.

Não precisava ser exatamente período de férias, bastava um feriado prolongado e eu com menos de dez anos de idade, olhava complacente para minha madrinha quando de sua visita a casa de meus pais e ela já correspondia:

- Comadre Gregório, eu vou levar o Josa para passar o feriado lá em casa com a gente, na segunda feira eu mando o Osvaldo vir deixá-lo.

Dava um fio de inveja danado na minha querida mãe, a saudosa dona Maria Bonfim, quando alguém me perguntava de quem eu gostava mais. Não exitava na resposta: Da minha madrinha, claro!.

Vivia os dias mais sublimes da minha existência, que tenho recordação, e nem me dava conta disso.

Apesar da curta distância da cidade de Ipixuna ao povoado Cidreira, não era tão fácil percorrer o trajeto até chegarmos à Bela Vista. O único transporte coletivo da cidade era o “misto”, de seu Francisquinho, depois é que veio o “pau-de-arara” do Vicente do Carro, e tinham horário de viagem definido para Bacabal. Os demais veículos existentes, ( na maioria jeep e caminhão), não ultrapassavam meia dúzia, e se bem me recordo, pertenciam a Nonato Veloso, Alceu Martins, Raimundo Gama, Lurdes Gomes, Pedro Matias, pessoas mais aquinhoados do lugar. Portanto, o percurso era feito quase sempre a pé, sem que fizesse qualquer diferença para mim. Se fosse pra ir pra Bela Vista eu iria até pendurado, ou a pé, nos caminhos mais poeirentos ou enlameados que existiam.

Numa daquelas aventuras, lembro quando juntamente com a tia Evanir, fui tentado a apanhar uma goiaba madura na margem da estrada. Em vez da fruta, o que peguei, mesmo, foi uma baita mordida de uma cachorra parida, que cuidava da sua cria ali bem perto. A ferida inflamou, me trousse incômodo, mas pouco me resguardei, afinal, aquilo tudo fazia parte das maranhas da infância. A bronca mesmo ficou pra casa, após o passeio.

Desfrutávamos daquele pátio imenso onde eu e os primos Walmir, Eduardo, Edísio e Osvaldo, ensaiávamos bater uma bolinha com a garotada do Pipira e Monte Cristo. Montávamos um improvisado ringue para luta de corpo, que tinha o Walfredo como imbatível, na categoria adulto. Vez e outra saia um desentendimento entre a garotada, uns tapas aqui outro ali, mas nada que horas mais tarde não tivesse tudo solucionado, quando zerávamos as diferenças naquele banho refrescante no imenso açude.

Na entrada da fazenda, próximo ao pátio, existia uma vegetação rasteira de erva daninha, onde as capotas punham seus ovos e nós saíamos à coleta. Depois desafiávamos quem tinha a coragem de ingerir o bicho cru. Diziam ser ótima vitamina pra menino ficar forte e inteligente, a competitividade era marcante, ninguém queria ficar pra trás.

Jamais vi tamanha abastança. A mesa do almoço era farta. Tinha de tudo que uma cozinha do meio rural que se preze devia ter. A despensa abarrotada de mantimentos, na maioria produzidos na própria fazenda, dispunha de rapadura, coalhada, queijo, doce e demais derivados do leite, que abundavam e até serviam como cortesia para as visitas da cidade, costumeiras e freqüentes.

Nesse tocante, dizem que seu Cravo, o gerente da fazenda e meu padrinho de batismo, procedia dessa forma, por gesto de gratidão e reconhecimento de conquista, em contraponto à sina que vivera na infância. Sertanejo, Cravo sentira na pele a dor da fome. De família pobre do sertão do Ceará, de onde veio, teria perdido dois de seus irmãos, ainda criança, vitimados pela fome, por falta do pão em casa, numa época de seca voraz que assolou o Estado nordestino.

Contudo, a época de maior abastança era sem dúvida a Semana Santa. Um rol de mulheres como dona Belinha, dona Ilda, Narcisa, tomavam conta da cozinha de onde saiam as deliciosas canjicas, pamonhas e bolos diversos. O Walfredo, criado enjeitado e o Zezão aloprado, comiam tanto que à noite toda, davam verdadeiro vexame, numa corrida sem trégua para o recato da cintina.

Perdemos a conta das brincadeiras de folguedo e dos aniversários de boneca promovidos pelas primas Socorro e Luzanira, quando juntava uma verdadeira legião de jovens adolescentes das imediações do lugar.

Afeitos à obediência paterna, bebidas alcoólicas, ainda, não se apreciavam. Drogas, não faziam parte do dicionário daquela geração. E sexo, só depois do casamento.

A prática de montaria em cavalos era de longe o passatempo mais predileto da turma. Vez e outra, tínhamos que lavar ao açude os animais que chegavam do serviço no pastoreio do gado. Era uma concorrência daquelas pra si apossar do melhor cavalo. Ainda não esqueci o nome de alguns daqueles animais: melado, pontaria, relancin, fronteira , guerrinha, passa-pau e o velho russão, (o da minha preferência), pois já aposentado das missões no campo, não suscitava perigo para um aprendiz de montaria.

Mas o bom mesmo era quando tínhamos que deixá-los na pastagem marginal da estrada, no cercado da Fazenda Nova Vida para recuperarem as energias das duras temporadas. Era certa a recepção da tia Raimundinha do Dedeus, mandando servir café, aos vaqueiros adultos e doce de leite e queijo, aos aspirantes de vaqueiro. Os marmanjos aproveitavam a oportunidade para uma boa prosa no Manoel Vieira, aquecendo a conversa e regando a garganta, com milagreiros goles da “marvada” ou do mais tradicional alcatrão.

Não era missão fácil, mas vez e outra, Conseguíamos convencer a vaqueirama para nos aceitar como apoio naquelas memoráveis cavalgadas. E dentre aqueles heróis anônimos, jamais poderia esquecer bravos vaqueiros como: João Ribeiro, Zezão, Chico Afonso, Antonio Joana, Manoel Coquinho, Toinho Napoleão, Artinésio, Lago Açu, Beleza, Alcenir, Chaguinha, Raimundo Branco, Guerrinha, Manoel Vaqueiro,na maioria já falecidos, mas que deram contribuição marcante nos primeiros anos de pecuária extensiva nos campos virgens do sertão gonzaguense.

Nada era mais gratificante, prazeroso, que rompermos a aurora, cavalgando na estrada tocando a tropa de animais, acompanhando a vaqueirama, garbosos, como se fossemos um deles, de verdade.

E tínhamos os nossos ídolos dentre o plantel. Os meus era o tio Artinésio e o João Ribeiro. Um dia, só não vi um boi levar dois de volta ao campo do Pinta Caneco, arrastados pela corda, por intervenção do meu admirável tio. Forte e resoluto, Artinésio saltou do seu cavalo e catou a barbela da corda. O bicho estrebuchou, mas não saiu mais do lugar.

Como em todo certame na vida, existiam também os momentos de tristeza. Nunca esqueci daquela manhã de um certo domingo da década de 60, quando um silencioso cortejo a pé, conduzia alguém numa rede branca para Ipixuna. Era comum a passagem de rede por ali, levando enfermos para atendimento na cidade. Mas, algo diferente me intrigou, despertando minha atenção. Quis saber o que significava tudo aquilo. Os adultos me deram qualquer desculpa... Mas alguém sussurrou ao meu ouvido, então pude perceber: Ocorria o enterro do lavrador Pedro Carrada, morto na Nova Vida, por uma picada de cascavel, ao capinar a roça donde tirava o pão, sustento de seus pequeninos filhos. No angustiante momento da passagem do féretro, tocava no rádio a canção “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa, cantada pelos Demônios da Garoa. Toda vez que ouço a música, o pensamento me transporta àquela triste ocasião.

Não recordo mais qual a emissora, mas no cair da noite sentávamos na varanda para ouvirmos um programa musical voltado ao campo denominado “No Varandão da Fazenda”. As rádios Clube do Pará, Pioneira de Terezina, Sociedade da Bahia, Difusora do Maranhão, eram as mais ouvidas no velho rádio SEMP “casco de jabuti” com antena suspensa por varas de taboca. Os sucessos musicais da época eram: Debaixo dos caracóis (Roberto Carlos), Menina de Trança (Antonio Marcos), Última Canção (Paulo Sérgio), a Jovem Guarda estava a todo vapor.

Acabava a programação predileta no rádio, entravamos em outro passa tempo requisitado: estórias de Trancoso e casos diversos. Mergulhávamos no imaginário, ouvindo aventuras de vaqueiros, contando as nossas anedotas, dando voou às ilusões, até sermos chamados para o recolhimento do sono. Amanha seria um novo dia.

Definitivamente nunca fui dado a festas dançantes.Na primeira adolescência, logo percebi isso. Alguns garotos da minha idade vez e outra acompanhavam os adultos nessas ocasiões. E um dia por arte não sei do que, inventei de ir com a turma a uma badalada festa na Sapucaia, animada pelos renomados sanfoneiros Miguel Zaú e Lapau. La pras tantas da madruga, o sono pegou forte. Enquanto os primos arrastavam o pé no salão, afagando boas companhias, sem se importar com as horas, eu numa ânsia louca, sem ter onde dormir, afagava muriçoca deitado na relva, num desejo ardente que o sol desse logo o ar de sua graça, entre as ramas da moita de maracujá.

Era costumeiro nos reunirmos à tardinha dos finais de semana, no terreiro frente a casa grande. Enquanto os adultos tratavam do cotidiano, nós da garotada ensaiávamos as brincadeiras de roda, onde de forma involuntária, mãos tocavam mãos que, terminavam por buscar proximidades mais afetivas. Numa oportunidade dessas, este velho coração pulsou forte pela primeira vez, cedendo aos encantos de uma bela “sereia” de blusa vermelha e cabelos longos. Deveria ter idade igual a minha, talvez uns dez anos. Bastaram rápidas e singelas trocas de olhares, para poucos gestos tornarem-se um conto, no curso daqueles verdes anos da nossa primavera existencial.

Os dias pareciam eternos, mas de uma rapidez incrível. Quando menos dávamos conta, já era domingo. O momento derradeiro.

Como num apelo existencial, eu acostumava naqueles instantes, pegar uma enxada e danava a limpar o grosso estrumo que costumava entulhar-se na entrada do grande curral, como se aquela fosse minha tarefa costumeira. Queria na verdade, fazer uma média com os meus padrinhos e assim eles intercedessem pra que eu ficasse mais um dia na fazenda. Mas felizmente eram inúteis meus apelos. Ao me despedir, com os olhos rasos d água, lembro quando meu padrinho deitava na minha mão alguns trocados. Dizia ele: pegue pra você comprar alguma coisa pra você. Foram os primeiros contatos que tive com dinheiro, fora do convívio com meus pais, de que tenho lembrança.

As horas da tarde de domingo, batiam surdas e maçantes, desenhava-se o retorno ao convívio rotineiro dos estudos na cidade. Quando ouvia aquele anuncio: Teu pai já chegou pra ti levar..., estático eu olhava o Jeep azul tomar o contorno frente ao pátio e batia-me uma desolação profunda. A sensação de angústia era indescritível..., parecia estarem tirando algo de dentro do meu ser, deixando enorme vazio. Imaturo, eu não era capaz de entender que meu futuro precisava ser construído num lugar bem distante dali.

Seguia como se escoltado naquele veículo incômodo, olhando o frondoso pé de burdão do canto do curral, aos poucos se perder de vista na estrada infinita, que me levava a um futuro desconhecido, mas a um lugar seguramente certo.

E, como todo bem materiável tem sua fase existencial, a lendária sede da antiga fazenda Monte Cristo, hoje Gleba Monte Cristo, teve o seu valoroso ciclo encerrado. Nos dias atuais nada mais ali lembra o que foi aquele venturoso planalto, ora denominado Fazenda Velha, subúrbio da cidade de São Luís Gonzaga, que se encontra num setor de transição entre a zona rural e a sede do município. Pertence a uma área desapropriada pelo Governo Federal, contudo, a bem da verdade, não se enquadra como patrimônio rural, nem recebe os benefícios de uma localidade urbana. É por excelência o portão de entrada da cidade, pois a partir de lá é possível se ter a primeira vista da mesma, para quem acessa à sede do município pela sua via asfaltada. Por sinal, primeira e principal entrada desde a sua fundação.

O tempo não se detém, e aquele passou, suprimindo vidas e renovando seres. Embranqueceram frontes, fertilizaram mentes, conseqüências do amadurecimento gradual. Com encantos e desencantos, transformaram o meio físiográfico, castigaram a matéria humana, inverteram causas e efeitos, promoveram realizações, construíram sonhos, dissiparam-se alguns, efetivaram-se outros. E o sotaque dos anos, permeado de encontros e desencontros, nos traz aqui hoje através desse veículo, com uma filosofia inquebrantável: a certeza de que a essência da vida está cravada na nossa origem e o seu maior significado reside nas coisas e gestos mais simples, verdadeiramente simples. Como o momento sublime que vivemos agora.

Josafá Bonfim, São Luís/MA, 07 de junho de 2011

josafá bonfim
Enviado por josafá bonfim em 17/01/2013
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