ACABADORES DE FESTA
Quem conhece a São Luís Gonzaga dos nossos dias, não imagina o quanto esse município outrora cultivava a prática de manifestações folclóricas. O tambor de crioula, o tambor de punga, a mangaba, as festas religiosas, os festejos juninos e o bumba-meu-boi, foram folguedos muito difundidos no município. Isso em virtude deste ser o centro geográfico e histórico, e, por conseguinte, irradiador da cultura posteriormente difundida nas diversas unidades municipais que deste se emanciparam.
As brincadeiras floresciam pela força das tradições culturais herdadas das reminiscências portuguesas e afro-descendentes que deram forma ao tecido social do lugar, desde o início de sua povoação, no limiar do século XIX.
Os incentivos do poder público eram maciços, e a ajuda financeira e logística dos simpatizantes, contribuíam para a sobrevivência e evolução dos espetáculos.
Das versões de folguedos dessa fase uma das que mais se destacaram foi sem dúvida o Boi do Cancelar, que tinha como patrono e patrocinador, o coronel da Guarda Nacional Manoel Alves de Abreu. Homem abastado, comerciante e fazendeiro, tendo sido na época o maior líder político do município.
O Boi, como o nome anuncia, tinha sua base de fixação no famoso povoado Cancelar, propriedade do ilustre homem público, que bancava toda a estrutura do batalhão de brincantes.
Os organizadores do folguedo, eram todos lavradores que moravam no próprio Cancelar, cuja origem era remanescente dos antigos escravos da antiga fazenda de mesmo nome.
Segundo o ex-brincante, Antonio Fernandes da Silva, o Paninana, cearense de Iguatú, -vindo pra essa região tangendo jumento em 1943, numa ceca braba-, confirmado por dona Filuquinha, 94 anos neta de escravos da Fazenda Cancelar, o boi era extraordinário e seus principais representantes daquela fase eram: Zé dos Santos, (irmão do, então, secretário da prefeitura Pedro Celestino dos Santos), Benedito Ferreira(uma espécie de catequista do povoado), Biné Vieira, (pai do Gilberto da Pitombeira), Nenem Mariquinha, tia de José dos Santos, proprietário de boate na outrora famosa rua 28 de julho em Bacabal, e Maria Vieira, que eram conselheiras e apaziguadoras respeitáveis.
O Boi do Cancelar tinha uma característica única, que distinguia dos demais: o conjunto era tocado pelos homens e as brincantes eram todas mulheres, o que o tornava mais insinuante e atraente.
Adotava o ritual de trocar de vestimenta três vezes por apresentação quando as brincantes eram cercadas em roda humana. Tradição esta herdada de seus antepassados, que foram os primeiros a povoar aquelas terras.
A primeira noite de apresentação (batizado do boi) e a última, (sua morte), ocorriam tradicionalmente no terreiro da casa grande da fazenda do Coronel Manoel Abreu.
Ocorre que, em um dos ensaios para aquela ocasião, no início de estação seca, por arte do maligno e para chafurdar a paciência de organizadores e brincantes, uma turba de inconseqüentes, que habitavam na cidade e tinha desafetos no povoado, resolveu “tirar as diferenças”, logo no local de maior apreço e concentração dos moradores: o ensaio geral do Boi.
Os trabalhos de ensaio estavam a todo vapor, até parecia que a exibição era pra valer.
Desocupados, os irmãos Vadico e Pedinho, descendentes de quilombolas da região da Boa Esperança, propriedade, à época, do capitão Mocinho Raposo, juntaram com mais quatro ou cinco à toa de sua trupe em Ipixuna e prontificaram- se a desforrar uma reprimenda que levaram tempos atrás num confronto com desafetos do Cancelar, em um jogo de futebol no campo da Trizidela, ou Bolívia como convencionavam chamar.
Muniram-se de seu arsenal de facões, lançaram mão de animais de montaria, pego não se sabe de quem, e rumaram para o outro lado do Rio Mearim, pegando mais um comparsa de fé, no início do arruado da Boa Esperança.
Arregimentaram-se, calcularam bem a distância e o tempo necessário, mas esqueceram de um lembrete: não avaliaram o risco e ignoraram que em jogo fora de casa até o vento torce contrário.
Caia a tardinha, a brincadeira no salão estava animadissima. Muita gente, do lugar e das encostas . Os tambores e pandeiros rufavam na toada solta. As chinelas ciscavam o solo poeirento, reverenciando “Catirina” e “Pai Francisco”, na corte do império encantado do “rei Sebastião”.
Mal se deram conta quando a tropa de baderneiros invadiu o recinto de facões nas mãos, dando lapadas no que encontravam pela frente. De gente a cachorro, tudo entrou no açoite. Sobrou panada até pra tamborete. Peças da charanga rolavam perdidos pelo chão. Fantasias esvoaçavam. O boi, largado no canto, ficou sem saber pra onde escapuliu o seu “miolo”. Vazou todo mundo. Poucos se arriscaram enfrentar a corriola enfurecida. Poucos... Porque o velho Zé Delfino “de guerra” estava lá. Como admirador e colaborador do folguedo, não faltava na tribo em ocasiões como aquela. Se exaspera, e do alto dos seus sessenta e tantos anos, bradou:
-Cambada de vagabundo isso num vai ficar assim, não.
-Se tiver algum home ente rocês, deixa os inocente e bota em riba deu. Vociferou, arrancando a própria camisa do corpo, mostrando o que ainda restava de musculatura, que os arroubos e excessos da juventude não conseguiram levar.
Com um robusto cajado de jucá,o sexagenário se atirou no embate, como um guerreiro ao inimigo feroz.
Cada safanada, era um rodopiando e outro se contorcendo no chão. O velho parecia ter encarnado os espíritos guerreiros de Zumbi, tamanha a fúria e voracidade, nos ataques aos inimigos.
A batalha correu solta no campo de chão batido de imensa coberta, que em num relance tornara-se quase vazio.
Os contendores do preto velho, iam caindo um a um. Enquanto os menos corajosos saltavam fora do cerco e zarpavam.
Restaram na peleja pra enfrentar o endiabrado Delfino,escornado num canto, de punhos ríspidos e olhar felino, apenas, Vadico e Pedinho. Mais expertos e sagazes que os comparsas, deixaram aquela contenda para o final, pois ali sabiam, seria inapelavelmente, a decisão do duro certame.
Pensaram liquidar de vez com a fatura, e não perderam tempo. Partiram para o tudo ou nada, pra cima da “fera” acuada. Dizem os mais antigos: que era incrível o contorcionismo e o reflexo que exibiam aquelas criaturas. Pareciam talhadas para aquilo. Os facões subiam e desciam velozes, procurando o corpo do veterano brincante. Quando desciam, só encontravam o resistente jucá, a tirar-lhes um tampo da lamina cortante.
O cansaço previsível foi se anunciando e antes de ser tragado pelo desgaste dos anos, Delfino percebe o fraquejo da dupla e aproveitando um descuido desta, salta e num golpe certeiro leva Vadico ao cão, que se contorce com a canela em “desgraça”.
Pedinho percebe o fracasso iminente e antes que o velho parta agora definitivo para tirá-lo do combate, faz um certo gingado de corpo e “vasa”, na mais abalada carreira.
Com o “couro” quente, saiu errando. Fugiu tão aéreo, que esqueceu do burro de sua montaria que deixara amarrado, encoberto num arvoredo na entrada do povoado.
Tirou o trecho a pé, encontrando seus sicários que tiveram seus animais soltos por populares, logo quando iniciou a pancadaria. Também em fuga, tentavam retornar a pé pra Ipixuna.
Pedinho se junta a turma e durante o percurso, esquenta o ouvido da corja, com insultos, esbravejando contra a covardia dos comparsas, por tê-lo deixado sozinho na “boca da onça”.
Cachingando, apressaram a marcha sem descanso, e a cada suspeição da vinda de alguém aos seus encalços, amoitavam no matagal da beira do caminho, até a onda de susto passar.
Só tiveram sossego, quando pisaram as barrancas do Mearim. Caíram nas águas frias, onde puderam, enfim, aplacar a sede, relaxar os músculos castigados e confortar seus “ais”.
Curioso: no mesmo lugar onde há mais de um século, tantas vezes seus antepassados das senzalas, recorriam para o descanso dos castigos do corpo e conforto da alma sofrida.
Josafá Bonfim, São Luís/MA, 17 de abril de 2011