Cinderela de Luanda
Numa noite fresca e tranquila de Luanda, lá para os lados da Rua Ndunduma, reparei que havia na estrada, junto a um carro, um sapato. Um sapato de mulher.
– Desculpa lá, eu sei que és jornalista e tal, mas vais mesmo escrever uma crónica sobre um sapato?
– Mau, ainda agora comecei a crónica e já estás a interromper. Que chatice, pá, é sempre a mesma coisa. Espera, tem calma que isto vai lá.
– Está certo, desculpa.
Podia ser somente um sapato, mais um objecto lançado para aumentar a grande pilha, a grande montanha de lixo que todas as cidades capitais produzem. Mas, este sapato chamou-me a atenção. Um sapato moderno, fino, verde alface, de verniz, salto alto metalizado, sofisticado, calçadilha prateada.
– Vê lá se alguém ainda te quer comprar o raio do sapato.
– Olha, assim não dá. Deixa-me em paz, pá.
– Eu deixo, só não vejo onde raio é que vai assentar o sapato.
– Isto não tem nada a ver com sapatos ou sapatilhas. É uma figura de estilo, uma alegoria para dar o mote do assunto que quero abordar.
– Pronto, agora vais ficar chateado... Não se pode dizer nada...
Naquela noite, naquele momento, naquele sítio, encontrei o sapato de uma dama e compreendi que não poderia ser somente um lixo, um despojo, um detrito. Tinha de ser mais do que isso. Apanhei o sapato e notei, rapidamente, que estava em posse de um acessório de uma estória de amor, de um adereço de uma quente paixão, uma loucura sensual. Logo eu, um lobo solitário, um predador de fome saciada. Era mais do que óbvio que eu havia encontrado o verdadeiro, o único sapato da Cinderela de Luanda. Cinderela, jovem, perfumada, corruptora de corações, altiva, feminina...
– Como único sapato? Onde é que ela comprava só um sapato? Lá à volta não estava o outro sapato?
– Mau, assim não dá. Que raio de feitio, pá!
– Ouve lá, estás para aí com o sapato e ainda não vi nem figuras de estilo, nem alegorias, nem nada.
– Às vezes, és chato, pá. Só estou no segundo parágrafo, ouviste? No segundo!
Uma mulher perfeita, dona das suas decisões, viajada e com absoluta consciência do seu poder junto dos outros mortais. Cinderela eterna e omnipresente, inspiração de tantas gerações. Saída da sua realidade para o baile majestoso da imaginação de todos nós. Cinderela princesa, Cinderela apaixonada, bailando livre e encantada nos braços do príncipe, príncipe imaculado de coração de oiro. Rodopia, Cinderela, dança, Cinderela de Luanda, daqui a alguns segundos chega a meia-noite, a derradeira badalada, chega o primeiro segundo do novo dia, mais um entre tantos. Mais um dia de táxi, mais um dia de pressa, mais um dia de olhar para o relógio, pensar nos filhos na escola, no jantar na mesa, na roupa estendida. Mais um dia, Cinderela de Luanda.
- Agora parece que já estou a ver onde queres chegar...
- Mas ver o quê, pá? Ver o quê? Pede lá mais um fino e cala-te por um segundo, pá. Pode ser?
Dança, Cinderela de busto firme e queixo erguido. Rodopia o vestido mágico, encanta tudo e todos à tua volta, Cinderela. Depois, nesse depois inevitável, voltarás a dançar, a rodopiar pelo teu dia, vestida de coragem, força nos braços, amor e leite no peito, Cinderela de Luanda, de todas as cidades de Angola. Dança, princesa, dança no Sambizanga, dança no Cacuaco, dança na zunga de
todos os dias, Cinderela. Dança no bidon de água, dança na fila do médico, no choro do menino. Amanhã, prometo-vos, em posse do sapato encontrado, prova irrefutável da existência carnal da Cinderela de Luanda, vou sair a perguntar se alguém a viu, se alguém conhece a minha Cinderela, a minha diva, a diva de todos nós. É fácil, não pode ser difícil encontrar uma princesa, toda ela cintilante, feliz e adorada, descalça de um pé, mas passo firme, rosto lindíssimo, entraçado fino. Alguém tem de a ter visto, anda pela cidade, anda pelas estradas, pelos campos de Angola. Se alguém a vir diga que peço, que imploro que ela venha dançar comigo, uma dança interminável pelo salão dourado da nossa vida, numa meia-noite que não chegará jamais e o encanto ficará, a magia de todos os dias. Digam-lhe que volte, Cinderela de Luanda, da Rua Ndunduma, quase à meia-noite de uma Luanda fresca e solitária.
- Olha, o fino está a aquecer.
- Olha, pois está. Desculpa, estava distraído a escrever.
- Não faz mal. Às vezes também me acontece.