TORANAGA

 
Não era exatamente noite. Era aquele momento estranho ente o sol que se vai e um céu ainda indeciso, quando algumas estrelas insistem em conviver com o azul claro. Um momento em que o vento estranhamente parecia tomar o lugar do som da biwa que a moça Osen tocava. E os sons pentatônicos se perdiam por entre aquelas cerejeiras, sufocados pelo silêncio que era maior do que qualquer frase musical eloqüente e definitiva.
O chão de madeira transmitiu então, as quase imperceptíveis vibrações dos passos do homem que vinha em direção à moça Osen. E ela, encabulada, não o olhava nos olhos, se contentando apenas em contar seus passos na madeira. E logo depois, percebeu sua sombra que a abarcava, como um céu que imediatamente se torna nublado. E ele passou. Passou com toda a dignidade que se esperava daqueles homens sem medo, com o corpo coberto de cicatrizes,  e feridas ainda em fase de cura.
O homem, Toranaga,  estava naquele momento indo a sua sala. Levava ao seu lado a sua espada curva. E o tecido de seda com cores vivas e insinuantes, às vezes cobria sua arma, por conta do vento incessante. Seu olhar era firme e quase vazio. Típico daqueles que viram a morte centenas de vezes à sua frente.
O som de Osen o seguia enquanto andava, e o circundava, para depois se fixar ao tecido florido como pequenas agulhas. Invisíveis.
Aos poucos, enquanto se distanciava, o som também ficava para trás, como aqueles animais que seguem desconhecidos e que, depois da indiferença, também se tornam indiferentes. Nada, para Toranaga, poderia demovê-lo de sua última necessidade na vida.  E Osen apenas observava aquele gigante ferido que andava pela madeira, com seus passos bem ritmados e lentos, como se estivesse na procissão de um homem só.
A sala era apenas a sensação da horizontalidade, com um suporte preto ao centro, e inscrições poucas em alguns papéis de arroz. A arte da caligrafia magnificamente dispensável naquele instante. E a pouca e fugidia luz que vinha de fora, respeitosamente deixava entrever as sombras do jardim equilibrado. Tudo em seu devido lugar. Natureza domada pelas mãos de homens silenciosos e curvados
Toranaga se ajoelhou perante o altar. Como jamais se ajoelhou perante nada. Sua vida o havia levado até ali, passando por centenas de vilarejos em busca de inimigos e contendores, em nome de uma honra e de uma técnica perdidas. Em nome de um amor sem nome pela sua armadura e de uma felicidade  confusa, expressada por apenas um aceno respeitoso da sua cabeça.
Naquele momento, era chegado o tempo da mudança e de seguir em frente. Toranaga retirou sua espada da cintura. Aquela que durante tanto tempo esteve coberta pelo sangue de tantas pessoas. Que por tantas vezes, partiu homens em dois, decepou braços e pernas e que tanto o salvou de emboscadas e de sua própria falta de fé no que os homens dizem.
Ele olhou longamente aquele pedaço de metal recurvado e marcado e para ele, se curvou finalmente. E não se pode dizer que seu coração palpitou. Aquilo era milimetricamente o que teria de ser feito. As coisas certas, para Toranaga, eram assim....Não poderiam toldar o equilíbrio da mente. E isso era a diferença entre se estar vivo ou na ponta de uma lança, ou dependurado em uma forca. Não havia tempo para sentir ou duvidar de seus caminhos.
Após a grande reverência, Toranaga deixou sua espada no suporte do altar. Não mais a tocaria. Aquele que foi seu amor mais sincero em toda a vida, jamais seria novamente empunhada e jamais tocaria o corpo de alguém para retirar a vida.
E o vento novamente entrou pela sala, trazendo a música do futuro. A música da moça Osen, que apenas aguardava com alguma alegria, a saída do guerreiro de sua sala.
Toranaga não poderia dizer nada naquele instante. Não havia tristeza. Mas também não havia alegria. E alegria mesmo, era não saber absolutamente nada a respeito de seu futuro. Isso significava que não sofreria naquele instante em que o homem, o guerreiro, se separa de sua arma, de sua garantia de vida.
Mas uma espada que fende pessoas em duas, também corta aquele que a porta. E a sua perna direita sabia bem disso. Sabia por causa de sua cicatriz viva e por vezes pulsante. Era como um agregado do corpo, feito para lembrar do passado. E para lembrar que as lâminas não têm direção. E mais ainda, que as lâminas e suas mortes, são apenas um produto das mãos.
O gigante finalmente se levantou. Dignamente. Os cabelos presos no alto da cabeça, o cetim esvoaçante e as mãos cerradas, como quem abdica da morte. Toranaga não sofreria. E certo de sua escolha, contemplou longamente aquela espada na bainha, repousando sobre o suporte. Enfim virou as costas. Sabia que nunca mais a contemplaria ou nela tocaria. E deixou que seus passos novamente se reverberassem pela madeira.
Osen o aguardava, em silêncio, sem saber ao certo de quase nada. Osen era o passado. E era o possível futuro.
Toranaga se aproximou, sem nada dizer e tocou a mão da jovem. Ela, em ruborizado silêncio, sabia que nada precisava ser dito. Não naquela vida.
Ela se levantou com a cabeça baixa, contemplou os pés do guerreiro e sentiu seu rosto tocado. A mão de Toranaga o levava até seus olhos sem dor. E tudo estava finalmente encerrado.
 
 
EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 14/01/2013
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