Pernas curtas

Joaquim, senhor culto e distinto, entrou no trem apressadamente sem olhar para trás. Verdade, eu garanto. Sentou-se ao meu lado e de imediato, abriu o jornal sério, concentrado sem me reparar a princípio. Eu, admirado, olhava-o sorridente e inquieto. Já pensaram? Manuel e Joaquim! Joaquim não, Machado! Lembro que foi assim e com riqueza de detalhes, apesar de ter na época, apenas dez anos de idade. Tudo bem, não lembro de todos os detalhes, nem que dia da semana foi aquele, nem horário, mas de resto lembro e lembro bem.

Ele, sisudo e concentrado na leitura, só olhou em minha direção quando eu puxei assunto, meio desconsertado. – O senhor gosta de Camões? Perguntei fitando –o com muita atenção. A viagem seria curta, minha mãe aguardava-me dali a umas três estações para compras. Acabáramos de voltar ao Rio de Janeiro e havia muito a organizar .Eu poderia não voltar a vê-lo, por isso, agarrei a oportunidade do contato como algo único.

- Gosto sim, claro! Ele me respondeu simpático. Garanto que a gagueira não atrapalhou a compressão e o desenlaçar de afinidades nesse contato que, juro, jamais foi esquecido. Acreditem! Os poucos minutos estenderam-se enquanto recitávamos trechos de Os Lusíadas. Ele começou com alguns versos do primeiro canto:

“No mar tanta tormenta, e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme, e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?”

E eu para mostrar desenvoltura, parti para o oitavo canto com ar de superioridade:

“Este interpreta mais que sutilmente.

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente,

E mil vezes tiranos torna os Reis.

Até os que só a Deus Onipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador, e ilude;

Mas não sem cor, contudo, de virtude.”

Ao que, terminando de recitar, recebi um afago na cabeça, seguido de um sorriso tímido e ouvi atento: - Não lembrava destes versos jovenzinho! Fico feliz em ouvi-los. Com cinquenta e sete anos, a memória começa já a nos trair. E Olhando-me nos olhos: - permaneça assim e ainda ouvirei falar de você.

Ao ouvi essas palavras e o apito do trem anunciando a próxima parada (na estação em que eu deveria ficar) levantei como se tivessem passado muitas horas... sentia como se aquele senhor fosse meu amigo e confidente ha muito e tenho certeza da reciprocidade disso tudo. Tudo rápida e suavemente, como água fresca bebida em dia de muito calor. Só desci com medo de que minha mãe ralhasse. Por mim, seguiria a viagem admirado e feliz.

Acreditem! Anotei a data daquele encontro na minha agenda escolar e desde então todos souberam da sorte que tive em conhecer Joaquim! ( Ao menos um pouco, ao menos de tudo o que eu lembrava. Machado, autor, ilustre, insubstituível. Não mais o vi, como já supunha, até pelo fato de ter passado a residir em Laranjeiras e depois em São Paulo com a família. Conto com muita propriedade. Esse momento, a despeito da idade que tenha, jamais se extinguirá da minha memória!

“- Mentira Bandeira! Esse encontro jamais ocorreu, você sabe!” Disse-me alguém da família certa vez, somente para invalidar minha credibilidade junto a vocês, meus amigos. Mentira? Tudo bem! Vá lá! Porém sem ludibriar ninguém. Pecado? Nunca! Tudo aquilo criado por mim, me pertence e aconteceu. Como esses fatos, que são meus e agora seus também. Voces agora também são conhecedores da minha história. Criada, desejada, mentida, instituída, inusitada. A mentira tem pernas curtas, e as invenções chegam onde quisermos.

Como na criação não há mentira, não há dolo, teria sido exatamente assim. E foi. Foi assim como eu criei. Acreditem em mim. Eu era uma criança e criança não mente, confessa o que imagina. Isso me concede o direito de, pela lógica infantil, reafirmar tudo o que contei .E o que é afirmado muitas vezes como verdade, torna-se verdade. Mentira? Classificação incabível. Prefiro: dar vida àquilo que se deseja por intermédio da palavra. Criança não mente, inventa.