Os meus Heróis

Tantos livros, tantos heróis que me ajudaram a sonhar e a viajar por todas as épocas e todos os Continentes. Com uma espada de madeira, cesto de vime na cabeça, eu via-me a pelejar os mouros ao lado de Mendes da Maia, o Lidador que morreu a combater os infiéis. Com o meu arco e setas de cerejeira eu desafiava o Robin dos Bosques no tiro ao alvo e ajudava-o nas suas lutas contra o Sherife e o príncipe João.

Saltando de ramo em ramo, mesmo sem macacos nem lianas, eu era o Tarzan, que embora sem Jane, não deixava de soltar os meus gritos, por vezes de dor, sempre que falhava o ramo e batia com o costelado no chão.

Os livros de Emílio Salgari transportavam-me para o dorso de um elefante, caçando tigres de Bengala, nas Índias, junto do português Eanes e do seu amigo Sandocan. Naveguei e abordei navios carregados de tesouros, ao lado de corsários como o Barba Negra, por mares das Antilhas.

Com Júlio Verne, sonhei com viagens magníficas, a bordo do seu fantástico submarino, vi peixes enormes, bem diferentes da sardinha e carapau que me serviam de refeição e quando me embrenhava no túnel do comboio da minha aldeia, perante a escuridão, imaginava a Viajem ao Centro da Terra.

O orgulho que eu sentia sempre que lia uma aventura do Luso Britânico major Alvega, um às da aviação da segunda grande guerra. Com a minha pistola de corcódea eu tentava ser o mais rápido a sacar, tal Yat Yarp, ou rastejando como uma serpente pelo meio das moitas, eu fazia de batedor, para o general Custer do sétimo de cavalaria.

Na minha imaginação queria eu ser como estes heróis, porém com o tempo comecei a ver dificuldades. Os heróis eram todos altos, simpáticos, valentes raramente perdiam uma luta, as damas todas lhes caíam aos pés, eu era o inverso, com fraquezas que não tinham. Em várias lutas em que me envolvi, umas ganhava outras nem tanto, por várias vezes apareci em casa com a cabeça partida, fruto das lutas de casculhos, que em montes nas eiras após a malha do milho, encharcados pelas chuvas eram munições de respeito. Quando o inimigo pela força e pontaria das nossas casculhadas, batia em retirada, nós corríamo-los até casa.

Eram todos ricos pois recusavam as recompensas, em favor dos mais desfavorecidos. Eu era pobre e sempre que davam alguma coisa, aceitava com ambas as mãos, apesar da vergonha.

Comiam grandes nacos de carne e caça que assavam no espeto, enquanto eu comia o que os meus pobres pais me podiam dar, certo, certo, era uma malga de caldo e um bocado de broa, por vezes um bocado de toucinho entalado na panela de ferro para dar gosto aos feijões.

E as roupas sempre impecáveis por mais lutas que tivessem davam lugar às minhas com remendos nos joelhos e chapões nos fundilhos. Tinham belas botas de cano alto, inclusive os índios tinham belos mocassins feitos de pele, comparado eu tinha uns tamancos de madeira cheios de tachas para não romper a madeira que tinha um contra, sempre que eu queria passar despercebido ou me descalçava ou então parecia uma junta de bois a descer a calçada.

Os melhores cavalos eram dos meus heróis, os mais rápidos, os mais inteligentes que normalmente eram chefes de manadas quando selvagens. Eu nem num burrito, tal Sancho Pança, tive o gosto de montar.

A única vez que montei, foi num lindo e forte carneiro que assim que me encarrapitei correu para um silvado, desmontando-me pelas silvas que me prenderam nas roupas e mal refeito dos arranhões espetou-me uma marrada que me atirou de um arrêto abaixo deixando-me um bocado escaqueirado derivado à queda de dois metros de altura. A partir dessa altura comecei a olhar para aquele rancoroso, como se de um urso pardo ou leão se tratasse e como sou uma pessoa de brios, nunca mais dei confiança àquele monte de lã raivoso. Sempre que ele me mirava com os cornos virados para o solo, trepava eu o mais rápido que podia à primeira árvore que encontrava, sim, porque depois do que me fez, confiança é que não.

Tinham sempre o melhor armamento para a época e nunca se constipavam, talvez pelo rum e muito whisky que ingeriam. O meu armamento era de fabrico caseiro, arco e setas de madeira e um canhangulo de carregar pela boca feito com dois canos de água enfiados dentro um do outro para não rebentarem, o fulminante era a cabeça de um fósforo, de modo que cada vez que se disparava a uma peça de caça, ela fugia antes que a carga rebentasse com o barulho do fósforo a deflagrar.

Outra coisa que me metia confusão era nenhum herói ter necessidade de urinar ou aliviar a tripa, já que eu mijei na cama até aos dez anos, sofrendo ameaças maternas, de ir para o meio do povoado mostrar os lençóis amarelos, envergonhando-me perante a canalha da minha idade.

Nem se preocuparem em molhar os pés sempre que atravessavam montados ou a pé, um rio ou pequeno curso de água. Atravessavam sem se preocuparem com aquele choc choc da água dentro das botas nem com o cheirinho daí resultante com odor a queijo podre.

Nas pradarias dormiam enrolados numa manta, com a sela como almofada, tendo o céu estrelado como tecto. Numa noite de verão tentei fazer o mesmo, olhando para o firmamento, tentava descortinar a Ursa Maior, quando um batalhão de melgas me atacou, deixando-me o corpo cheio de comichões. Foi uma corrida até casa para tentar acalmar aquele ardume com o esfreganço de aguardente. Uma hora foi o suficiente para esquecer as noites na pradaria.

Os meus heróis eram íntegros, para todos era uma desonra atirar pelas costas; já eu, por força das circunstâncias, via-me obrigado a actos menos dignos, tais como mandar umas pedradas para cima da árvore da fruta, sempre que eu deparava com algum concorrente a depenicar as cerejas ou outro tipo de fruta que eu já antes trazia debaixo de olho.

O que me faltava em meios sobrava-me em alma, a imaginação transportava-me para continentes que não conhecia através da arte dos diversos autores, mesmo quando se descuidavam nas lutas e com um colt de seis tiros abatiam sete e oito sem recarregar.

Como de um filme se tratasse até me parecia que ouvia o som dos tiros e o cavalgar das montadas, o cheiro da pólvora, o rolar das ondas, o rugir dos leões. Era um filme com sons e cheiros, descritos num livro.

Obrigado, meus heróis, que com alegria e muitos sonhos, me ajudaram a passar os melhores momentos que qualquer ser humano tem na vida, A JUVENTUDE.

Lorde
Enviado por Lorde em 10/01/2013
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