Minha escola (entre quatro paredes)

Porque nós somos seres decaídos. Se eu estivesse ainda na unidade divina, de onde provenho, a sensação seria de pura plenitude, em fim. Mas como sou um ser decaído, vivo no tempo e não na eternidade, essa minha condição, a condição humana: experimentar de vez em quando( ess)a beleza.

Adélia Prado

O dom do homem é recortar espaços. Antes de haver o homem era o espaço vazio e infinito. Ao homem foi dada a missão divina de nomear os seres e recortar o espaço. Assim ergueu-se a primeira parede, porque o finito e limitado são necessários. Sem isso seríamos poeira cósmica sem suporte nem apoio. Os loucos em busca da cura pendem o corpo e se apóiam nas paredes, como o fazem todos os que padecem alguma enfermidade. As paredes nos dão apoio: eis o homem.

Quando tencionamos nos elevar além e acima do concreto ainda assim recorremos às paredes e construímos: torres, igrejas, escolas. São espaços humanos que aspiram ao transcendente. A primeira é fruto de um equívoco: intenta a elevação fisicamente – é torre de Babel! Obra de Dédalo na loucura de Ícaro. O destino desse intento megalomaníaco é a queda (haja vista as torres gêmeas, babel moderna como a própria New York).

As igrejas! Essas são de fato espaço para a ascese da alma – especialmente as que transbordam em forma e grandiosidade. Roma é o contraponto, o avesso de New York. As igrejas evangélicas pecam exatamente no comedimento e na sobriedade! Só o homem barroco tinha razão: a beleza e a grandiosidade do transcendente nasce no que transborda! Porém, suas paredes, que dobram e desdobram o divino, são feitas mais para a visão do que às mãos, banem o corpo e dirigem-se à alma (cujas portas são os olhos). Não há entre suas paredes espaço ao imanente.

Tudo que se dirige à alma, dirige-se em silêncio de oração, porque as mãos, os dedos, tato, olfato e a voz nada podem ou dizem nessa dimensão. É, por isso, espaço de silêncio. Nas igrejas não cabem os ruídos que não sejam de oração. (Lembro-me criança levado pela mão de minha mãe à igreja e, ao menor sinal de minha voz, era-me imposto o silêncio!). Os olhos não gritam, clamam! E todo o espírito se enche de divino! Mas esse é, por isso mesmo, o espaço do inominado. Onde não há voz não cabe o nome. Ali só cabe Aquele que é! E não há mais que aceitá-Lo em sigilosa comunhão: nada há que nomear!

Mas essa é também a missão do homem: nomear! E o primeiro nome é sempre um grito de espanto e dor, porque é o gesto adâmico por excelência: a criação! E não há como concebê-la em silêncio, pois nasce do atrito e do contato. Tudo que se cria pede movimento e reação, desloca-se o corpo pelo espaço e lança-se a voz pelo vazio. E a cada novo achado e descoberta o susto, o medo, a alegria e o grito são gestos conseqüentes.

Como há um espaço próprio à comunhão faz-se mister também o lugar da criação. E esse espaço é a escola. Lugar de imanência, onde se elabora, com as mãos e com a voz, o elo ao transcendente. É o espaço do saber que se constrói, tijolo a tijolo até a elevação do corpo, da mente e do espírito. Este espaço é também construído de paredes, que, como um labirinto, se recorta em outras e outras. E entre quatro paredes dá-se o ritual do aprender e apreender fisicamente o saber, que eleva e transcende a mente e o espírito.

Mas para que isso se faça é necessário a práxis. Não se faz saber sem a práxis – que supõe ação, movimento, ruído e voz. "Heureca" é o grito do saber. Não se concebe saber em silêncio. Até porque o saber é construído em mutirão, em troca mútua de tijolos, como a criança que, dos dejetos que o pai artesão lança ao chão, refaz em microcosmo um mundo de brinquedo: e fala, e grita, e quebra, e aprende. Apreende fisicamente algo que transcende.

Se não se faz assim e se se impõe apenas o silêncio, a escola é infecunda: é a igreja sem mistério e sem divino. Nesses casos não se recorta mais espaço para a construção do imanente, mas cerceia-se o saber, limitando o que nele é mais sagrado: a criação. Não se trata mais de escorar-se nas paredes para salvar-se e crescer, mas isolar-se e desolar-se entre quatro paredes. Assim, entre quatro paredes, não se faz nem o espaço imanente (o espaço criativo por excelência), nem o espaço transcendente (o espaço da ascese e elevação); nem se faz escola nem igreja; nem o espaço do ruído nem o espaço do silêncio, nesse caso, entre quatro paredes, dá-se a mudez!

Natal, 05/07/2001.

Edilberto C. Santos.

edilc
Enviado por edilc em 10/03/2007
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