Dona Selma
Dona Selma aprontava feijoada ouvindo os Beatles. Metia a cara na janela do terceiro andar berrando com todas as forças para a madame na calçada:
- “Franga! Rainha do supérfluo!”
A madame chique ficava fula da vida. Tinha o demônio no corpo. Gostava de adoecer em dia certo. Começava na quinta-feira. A quinta de sinusite. Na sexta subia até a ponta do cabelo uma enxaqueca devastadora.
No supermercado Dona Selma tirava os sapatos acomodando-os no carrinho sobre as compras. Por longos meses ninguém percebeu nada. Dois escoteiros denunciaram a situação para o gerente. Segundo eles a boa ação consistia em prestar socorro aos alienados. Tratava-se de senhora louca, portanto arrastariam Dona Selma até a ambulância se precisasse. Tudo o que ela desejava de fato era voltar para casa com a caça do dia. Só precisava abater no caixa os itens: almôndega enlatada, massa instantânea, absorvente, chocolate e uísque. Desconhecia qualquer placa exclamando “proibidos pés descalços!” Havia? Não havia. Então...
Jamais imaginou que aquilo fosse anormal a ponto de virar notícia. Quando a televisão e a polícia chegaram ao mesmo tempo o escândalo já havia começado. O país inteiro assistiu ao começo do impasse. Dona Selma está louca? Sua resistência inabalável diante dos dois escoteiros brancos como papel era consumida pelo ódio. Ódio reprimido por soldados. Gostava de andar descalça, era só isso.
- Pense você em casa, disse o repórter, naquilo que é certo para a nossa sociedade. Vocês deixariam seus filhos andarem com os pés descalços dentro de um supermercado lotado? Seria um direito do cidadão? Responda você mesmo.
Um mendigo concedeu a seguinte declaração sobre o tema:
- Bem, poderia entrar sem sapatos, depois sair de lá com eles; mas sapatos da prateleira! Seria erro grave permitir que todo mundo andasse sem sapatos. Pensando bem, refletiu o mendigo, eu poderia trabalhar cuidando a entrada e saída.
Havia gritos, socos, pontapés de Dona Selma.
Ameaçou ficar nua. Diante da advertência os escoteiros fecharam os olhos. Um grupo de desocupados aplaudiu calorosamente.
Um senhor de cabelos grisalhos se apresentou do nada como psiquiatra.
- Sou o doutor Mascarenhas Albuquerque Vaz. Ela é minha paciente. O delegado suspirou aliviado. Notem se não foi o Mascarenhas Albuquerque Vaz quem privou o país de desfecho triste, revelando. “Minha paciente é inofensiva sem sapatos”.
Teve gente que riu sonoramente. Em seguida se calaram porque o ar forte, mesmo no dia quente, vindo das palmeiras, promovia densidade ao instante. O que estava fazendo o delegado ali? A presença de autoridade e televisão enquadrava o fato como se um inverno pedisse emprestado um casaco. Havia uma mulher descalça em local público. De repente muitas pessoas despiram os pés em apoio porque ela, Dona Selma, rabiscou na tarde de supermercado um pormenor nunca antes pensado. Uma ocorrência nova. Uma ocorrência que borrava o seu retrato e para lá do retrato dela não havia mais nada. Nada além de contas a pagar. O transeunte bêbado interferiu, cinicamente, saltando perdigotos por sobre o ombro dos curiosos, entre gente amontoada atraída por escândalos.
- Será que ela não estaria interessada em usar o sapato como moeda de troca no caixa? Afinal havia uísque em jogo. “Para tudo há uma explicação” finalizou com chave de ouro intransferível. Eufórico o pinguço comemorava a razão juntada de dois pontos. Comentário de quem possuiu o tipo de euforia “záz ájax” instantânea. Puro eufemismo de quem acredita ter inventado um salmo novo e desconhecido.
Para o doutor Mascarenhas ela nada sofria. Nenhum defeito, nenhum arranhão que justificasse internação. Reuniu a imprensa na frente do supermercado dizendo: “Não vamos internar Dona Selma”.Estava salva da condição de louca.Ficou nela certa marca profunda. Na parte onde o Mascarenhas bate nas costas dos escoteiros e eles saem em disparada. Atravessam a rua e são quase atropelados por ônibus entupido de torcedores. Torcedores no auge do triunfo. Não há duvida de que ficou apaixonada pelo Masc.* Ouvindo Beatles durante a feijoada percebeu algo diferente e sabia o quanto não era hipertensão.
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* De Mascarenhas.
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