UM AMIGO PARA SEMPRE
Quando criança, eu tinha dois grandes amigos: Rafael e João. Éramos vizinhos e a rua era o espaço para nossas brincadeiras. Um era ruivo, com os cabelos espetados e o rosto cheio de sardas e detestava ser chamado de “cabeça de fogo”. O outro era negro, de lábios grossos e cabeça raspada. Nós três tínhamos somente nove anos naquela época e a sensação de uma eternidade pela frente.
Rafael tinha o espírito de líder. Sempre chegava com ideias bacanas para nossas brincadeiras e falava com entusiasmo sobre o que e como brincaríamos. Eu e o João sempre topávamos, pois, antes mesmo da brincadeira começar, tudo parecia que ia ser o máximo ao estarmos fazendo o que Rafael descreveu.
João era um menino tímido e extremamente companheiro. Sabia partilhar, compreender e valorizar tudo o que fazíamos. Apaziguava os ânimos do grupo quando não entrávamos em acordo. Mostrava sempre um lado diferente que realmente nos convencia a parar de brigar e partir para outra.
Eu era a menina que não aceitava nenhuma gracinha. Às vezes, se provocada, perdia a paciência e engrossava. Geralmente, isto só acontecia com as outras crianças com quem brincávamos na rua. Os outros meninos não eram como o Rafael e o João, pois faziam piadas e eram violentos entre si. Viviam brincando de se machucar, chutar, lutar e isso era bastante irritante. Eu gostava mesmo era dos meus dois amigos e os demais eram apenas os outros meninos.
Brincar era divertido. Inventar os brinquedos e as brincadeiras era muito mais! Pode falar quem quiser, mas isso era o que dava sabor aos nossos dias. Às vezes, passávamos juntos a tarde inteira, chegávamos cansados em casa. Exaustos de tanto correr, pular, saltar e jogar. Havia dias em que parecíamos uns bichinhos, de tão sujos. Como eram bons aqueles dias!
Um dia meu amigo João adoeceu de verdade. Isto é, não teve uma dorzinha qualquer de garganta. A doença de João devia ser algo muito sério. Até eu e o Rafael não podíamos visitá-lo, porque fomos proibidos pelos mais velhos que não explicavam os reais motivos da proibição. Ficávamos sabendo algo dele através das conversas que ouvíamos por de trás das portas. As pessoas diziam que era algo e o chamavam de “coitadinho”. Não sabíamos por qual motivo sentiam pena dele, apenas sabíamos que era algo grave.
Naquela época, criança não se envolvia em conversa de adultos. Quando estes queriam falar sobre coisas de gente grande, ou cochichavam ou mandavam a gente sair de perto. Mas criança não é tola nem nada. Todas as vezes que eles agiam assim, nós sabíamos que era proibido ouvi-los. Aí a curiosidade aumentava a tal ponto que fazíamos de tudo para ouvir o que diziam. A interpretação dos fatos, é claro, ficava por conta do nosso entendimento distorcido ou incompleto de cabeça de menino.
João não participava mais de nossas brincadeiras. Passava os dias em casa, em seu quarto, geralmente deitado. Sabíamos que ele não estava bem e que, à medida que os dias avançavam, o caso dele ficava cada dia pior. Ouvíamos dizer que a doença dele era tão grave e nem os chás e as benzeduras não davam conta. Levaram-no a um médico na cidade, mas voltaram desanimados. João estava mais magro e pálido. Não conversava e nem ria. Parecia se despedir todos os dias da vida que escapava de suas mãos, levada pelo sopro da morte.
Havia dias em que eu e o Rafael ficávamos sentados, na beira da rua, esperando uma notícia boa que nos tirasse daquela angústia. Como nosso amigo fazia falta! Não entendíamos por que uma criança devia passar por tamanha provação. Cada dia era uma luta contra algo que desconhecíamos.
Infelizmente, em um dia nublado e frio, a história de João teve um fim. Lembro-me do choro agudo e sentido da mãe dele. Do soluço preso na garganta do pai e dos irmãos menores ainda confusos, sem saber o que fazer. Eu mesma não acreditava que meu amiguinho partira para sempre. Rafael sentia a falta de João e contava das coisas que juntos vivíamos. Nós tínhamos apenas 10 anos e nunca imaginaríamos que um de nós partiria e viraria um anjo no céu.
Descobri que nossos amigos de infância são especiais. Não importa quanto tempo passamos com eles. O que importa é a qualidade dos dias que vivemos. Quero acreditar que João está em um bom lugar, cercado por outros anjos e brincando como uma eterna criança.
Luciane Mari Deschamps