Desabafo

Tal como a fome é o melhor tempero, também hoje a chuva ainda que a intervalos e fraca, por ser tão desejada deixa-me de olhos encostados ao vidro, encantado, vendo as goteiras do telhado tenuemente a escorrer.

Para um citadino um dia como hoje é um dia chato. Para quem depende da chuva para que as sementes germinem, cresçam e se transformem em pão, um dia de chuva é uma bênção. Daí a estranharem quando chove, os média digam; hoje não está um bom dia. Numa expressão de puro egoísmo e no mínimo inconsciente de gente que dá voz a uns quantos, que do alto da sua arrogância se dizem cultos. Cultos porque estudaram, viajaram por este ou aquele país. Falam uma ou mais línguas, escrevem nos jornais, falam na rádio, dão conferências, formam grupinhos de gente culta, nos blogues e nas páginas sociais. Gente que se escandaliza ao ver matar uma galinha, mas que no entanto são capazes de percorrer quilómetros, para no meio de gente culta, saborearem uma cabidela ou um leitão assado à Bairrada, degustarem e discutirem as qualidades deste e daquele vinho, mas que no alto da sua sapiência, desconhecem o que são garfos, as enxertias, a poda, a empa, as cavas, as curas, mas falam nos anos e nas castas deste ou aquele vinho como eruditos que são, embora não distingam uma videira Touriga Nacional, duma Piriquita, duma Baga ou Trincadeira. Mas falam das qualidades intrínsecas desta e daquela casta como Chardonnay, Bourgogne ou Chateaux do Médoc, como se fossem enólogos, baseados no que leram em revistas da especialidade. Esquecendo os vinhos nacionais de grande qualidade como os Verdes do Minho, os maduros do Douro, do Dão, da Bairrada ou do Alentejo, que competem com um outro qualquer em qualidade, seja de que País for.

Mas fica sempre bem falar dos vinhos desta ou daquela região, embora desconhecendo as propriedades do solo, na exposição solar, na influência das chuvas, no tempo exacto da maturação para se fazer a vindima. Gente que olha com desdém para o camponês que não sabe distinguir no vinho os paladares, dos diversos tipo de frutas e no entanto o cura das doenças ao menor vestígio de míldio ou oídio. Gente que o vindima, o balsa e trasfega, com o saber transmitido de pai para filho, para no fim ver os senhores cultos enaltecerem os taninos e discutir qual o melhor prato, para este ou aquele vinho.

Um vinho não deve ser bebido, mas sim apreciado. Apreciar um vinho é observar a sua garrafa «não o rótulo», guardá-lo, abri-lo e servi-lo com todo o cuidado para que as suas propriedades não sejam alteradas. Escolher copos adequados e verificar se o vinho está à temperatura ideal. Observar a cor do vinho, inspirar cuidadosamente os seus aromas e levar o líquido à boca. Aí, deixar o vinho percorrer todas as zonas para que a estrutura, intensidade e textura sejam degustadas.

Por fim agradecer ao pobre camponês que por vezes pouco mais que analfabeto, sabe como ninguém produzir aquele néctar que o delicia. Honrando-o ao apertar-lhe a mão calejada sem sobranceria, aquela mão que o alimenta, com os produtos que extrai da terra e que se alegra com o sol e se lamenta quando não chove.

Lisboa, Janeiro de 2013.

António Correia

Lorde
Enviado por Lorde em 07/01/2013
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