UMA VELHINHA INUSITADA

Num único e rápido olhar ninguém daria nada por ela, porém não pela aparência, claro, pois que muito bem arrumada com seu casaco vistoso, luvas, gorro na cabeça, cachecol e até óculos de grau bonito, além das botas que lhe subiam ao joelho. Falo da sua fragilidade aparente, provavelmente já estivesse octogenária, corpo magrinho, braços mirrados e pelancudos, olhar suave de mulher que por muitos e muitos anos foi testemunha cotidiana do passar dos anos, pernas evidentemente cansadas, talvez varizentas, o olhar diferenciado dos dias da juventude, mortiço como certo, o ar de quem só estar na rua por alguma razão por demais importante, a ansiedade tomando conta de seu seu, agitando seu coração para regressar depressa ao conforto do lar.

Acompanhei-a de curta distância, um tanto comovido com aquela senhora sozinha, comecinho da noite em Paris, a temperatura gelada flutuando no ar e acariciando brutalmente seu rosto ressecado, maltratando sobremaneira aqueles olhinhos envelhecidos de tanto ver a vida passando em seu caminho. Tendo-a em meu campo de visão, recordava-me das avós encarquilhadas procurando espaço para continuar vivendo nesse mundo conturbado, de seus sorrisos bondosos e livres de maldade, da monocórdica voz quase balbuciada quando pretendiam pronunciar algo, e cada vez mais eu me emocionava por essa razão especial e por tudo que poderia lhe dizer respeito à medida em que ela seguia em silêncio, firme, um pouco curvada, sim, e todavia segura, uma lixeira pública à sua frente, eu seu caminho.

E foi justamente aos pés dessa lixeira sobre a calçada por onde caminhava que ela parou, resoluta, sabendo o propósito da própria alma, e me levou à perplexidade. Tirando forças somente Deus sabe de onde, ela, num gesto brusco, ciente de todo poder naquele momento explodindo em seus músculos esbaforidos, e isso parecia um segredo apenas dela, íntimo e surpreendente para quem, como eu, a visse fazendo isso, simplesmente levantou a lixeira e a semi-virou sobre si mesma, demonstrando tanto equilíbrio quanto capacidade mecânica para efetuar aquele ato nada comum para sua idade. Fiquei completamente sem ação, embasbacado, atônito. O que estaria ela tentando fazer ao levantar a lixeira daquele jeito esquisito? Enlouquecera?

Nada disso. Emborcada daquela maneira a lixeira jogou sobre a velhinha metade de uma baguette ensacada e jogada ali por alguém. Era justamente esse o alvo dela. Segurou o alimento com o queixo sobre o amplexo, colocou a lixeira de volta no lugar, sorriu largamente, pegou a baguette com a mão direita colocando-a sob a axila esquerda e tornou a andar, satisfeita, cantarolando baixinho trechos de determinada melodia francesa a mim desconhecida, balançando a cabeça, por muito pouco não dançando na calçada sob o meu olhar ainda estarrecido e abobalhado.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 04/01/2013
Reeditado em 04/01/2013
Código do texto: T4067799
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