Tempos de menino
Os anos eram os que iniciavam a década de Setenta, eu um menino franzino e de fama ser quieto e comportado, mas que de santo não tinha nada. Traquinava à minha maneira e quase sempre me dava mal. Que tempos eram aqueles...quando nem pensava existir a necessidade de enfrentar as selvas urbanas, o mercado de trabalho, nem sabia o que gostaria de ser quando crescesse, que nada, era acordar bem cedo, ir ao colégio, assimilar ao máximo as aulas para não ter que passar horas “perdidas” a estudar. Tinha mais o que pensar, tinha um timinho de rua que todas as semanas era convocado para mais um desafio contra a rua 9, com os caras mais cruéis do bairro, a parte mais humilde e também os mais durões, metidos a valentes.
Eu e meus amigos “filhinhos de mamãe” mas nem sempre fugíamos às provocações. O “estádio” era um campinho num terreno baldio com uma subida enorme e que tínhamos que alternar os lados para não ficarmos em desvantagem, umas das balizas era mais curta que a outra, um lado havia mais grama, mas no final tudo se equilibrava.
O jogo só parava quando “seu Jorge” passava com sua carrocinha de pipocas a soar sua buzina, todos paravam e corriam em disparada pedindo um “peruá”, que nada mais era do que os milhos que não estouravam misturados com alguns bons numa gaveta e que “seu Jorge” não se importava em abrir e distribuir com um sorriso nos lábios para aqueles garotos quase sempre sujos.
Tempos em que não precisava pensar que o amanhã viria me cobrar as responsabilidades, apenas seria mais um dia de aula, de minutos fazendo dever de casa e de muitas horas na rua. Dependendo da época seria a pipa, bola de gude, pião, garrafão, enfim, sempre alguma brincadeira ou esporte daquela garotada sadia e ainda inocente, famílias de classe média baixa, mas de alegrias esbanjadas e amizades boas e duradouras. As brigas no colégio pareciam um confronto entre campeões de boxe, com direito a local e hora marcados, uma torcida apaixonada sempre tomando partido de um dos lados e fazendo a maior gritaria. Poucas as meninas se aventuravam nessa diversão, “era coisa de homem”, dizíamos. Uma certa vez me vi como protagonista numa briga dessas, não era muito meu feitio, primeiro por possuir um físico nada invejável, de temperamento apaziguador, não gostava de violências, mas nesse dia não teve jeito mesmo.
Os motivos ainda me recordo, o sumiço do meu livro de francês, havia um aluno novo
naquele ano e que ninguém gostava muito, apesar dele ser bem mais forte que a maioria, era sempre mal tratado. O sujeito era meio maluco, gostava de soltar grandes arrôtos, de cara o apelidamos de suíno.
Mas naquele dia o “suino” atravessou meu caminho, como ele sentava-se atrás de mim e já não contava com minha simpatia, não hesitei em acusá-lo, a turma me apoiou e tive uma atitude ainda na sala muito rude, dei um soco no sujeito e acabei acertando a parede. O sangue subiu, alguns viram o acontecido e já gritaram:
“Hoje vai ter briga! Hoje tem!” se iniciou os preparativos, alguém já marcou o local e hora em nosso nome, devia ser o Dom King da época. Resultado, foi se passando as horas e seria somente ao final das aulas é claro, para não dar problemas para ambos, o pessoal era compreensivo...
Mas com o passar das horas fui me acalmando, senti dúvidas se foi ele mesmo, uma vez que meu livro misteriosamente como sumiu voltou a aparecer sobre minha mesa, e a minha raiva do “adversário” foi passando, já não tinha a menor vontade, quase falei com ele, mas não pude. Já havia um compromisso social e de macho marcado e era irreversível que acontecesse. Seria acusado de covarde pelo resto de minha existência naquele colégio se voltasse atrás naquele momento. Senti que também o cara estava sem a menor vontade de brigar. E agora? Não haveria maneira de evitar. Ouvi uma proposta indecente de que poderia ficar tranquilo, caso eu estivesse me dando mal na briga a turma separaria, caso contrário eu poderia bater à vontade. Tudo armado para verem o “suíno” levar uma boa surra, um fracote que até então nunca havia lutado para o deleite da garotada.
Chegou o momento finalmente, notei que meu “ibope” estava alto, até algumas meninas estavam dispostas a verem o combate.
Pois bem, resumindo a história, até que alguém empurrasse um em cima do outro o confronto não se iniciou. Dei um soco da boca do “suíno” e levei um contragolpe à altura, um soco no olho que me valeu um inchaço imediato. A turma sentiu que eu iria levar uma surra e separou-nos antes que acontecesse o pior. O camarada além de se sair bem teria que ser respeitado perante a turma, era a lei vigente entre os machos.
Tentei ainda me explicar com minha tia sobre os motivos do olho um pouco inchado, mas ela já sabia da verdade pois uma querida prima passou de ônibus e me viu no meio da arena. Não perdeu tempo em me “entregar”, quem sabe me valeria mais uma surra quando chegasse em casa?