A SANFONA REMENDADA

O metrô destravou suas portas numa estação qualquer de Paris, a multidão desabalou porta afora procurando seus destinos, os que esperavam para entrar também adentraram apressados porque em poucos segundos as portas seriam retrancadas e o monstro de ferro sob a terra prosseguiria sua viagem. O vagão onde estávamos não superlotou, poucos passageiros tomaram posição sentados ou em pé, alguns apoiados nas barras de ferro olhando discretamente uns aos outros e baixando os olhos logo em seguida como sói acontecer quando se cruzam olhares entre pessoas desconhecidas. Entre os que entraram no nosso vagão, veio aquela figura ímpar e bem humorada dum homem vestindo um casaco já puído de tanto uso, atrás escrito a palavra "Canadá", fiapos se desfinhando, a calça muito surrada, cabelos desgrenhados, sorriso franco no rosto, atravessada no peito uma sanfona.

A sanfona tinha mais remendos do que eu jamais vira antes, meus olhos se fixaram nela com renovado interesse em virtude da estranheza absurda que passava a quem repousasse os olhos sobre ela. Além de vários remendos, ela tinha a horrenda aparência de suja, rota, velha, como se objeto há tanto tempo usado que já não servisse mais, de maneira nenhuma, para o seu objetivo inicial. Descascava-se, rasgava-se aqui e ali, não soube se tinha mau cheiro porque o sanfoneiro não ficou muito perto de mim, todavia aparentava esse ar desleixado de coisas esquecidas nos baús, trastes que o tempo se encarregou de envelhecer e surrar, tornar obsoleta, quase inútil, feia, de uma feiura meio singela, inesperadamente cândida.

E no entanto, o homem que a conduzia, com seu jeito de bonachão, aprumou-se próximo à porta do vagão, acariciou-a como se afagasse algo muito precioso, tirou-lhe alguns rápidos e súbitos acordes, ajeitou-a sobre os ombros, olhou despejando sorrisos sobre os circunstantes e, balbuciando algumas palavras em francês, que não compreendi, e de modo simples, calmo, parecendo até feliz em fazer isso, começou a tocar sereno, viajando, tomando lugar no espaço em derredor. Para minha surpresa e espanto, daquela sanfona velha e remendada saíram melodias encantadoras e fascinantes, músicas como que saídas de um instrumento de ouro e tocada por esse tipo de gênio nunca dantes visto à nossa frente, e os tons e semitons afinados fluíam entoando canções que não apenas falavam aos corações dos presentes, mas faziam nossas almas dançar embaladas, sonhadoras, eufóricas, dominadas por delicioso frenesi a abarcar o corpo inteiro e fazer pouso no coração.

O homem sorridente e bonachão, cujo aspecto jamais diria tratar-se de músico da melhor qualidade, tocava e tocava sem parar, bailando quase com os gestos dos olhos, o balançar da cabeça, o refrear dos braços, o tracejar das pernas, o suave pinicar dos dedos nas teclas da velha sanfona surrada, remendada, velha, desgastada e feia, de onde vinham os acordes mais envolventes, uns toques mais atraentes, as músicas mais tocantes e sublimes, e todas as pessoas dentro do vagão se remexiam, tamborilavam o ar, sonhavam acordadas, acompanhavam a música com tal denodo que lembrava o flautista de Hamelin a levar para longe as crianças da cidade que não soube agradecer nem pagar por tê-la livrado da praga dos ratos.

Daquela sanfona remendada e esquisita e das mãos mágicas do homem mal vestido eu não esperava tamanho encanto musical, tanta sublimação melódica, essa explosão magnífica de oceânicas ondas emotivas. Ao final, chegando à próxima estação o metrô tornou a abrir-se ao público saindo e entrando, mas antes disso ele parou de tocar, retirou do bolso um copo de papelão dobrado, desdobrou-o e passou com ele aberto por entre os ouvintes ainda desnorteados, o sorriso bondoso no olhar, a pedir não o pagamento por seu trabalho, mas tão-somente um gesto de gratidão dos semelhantes por sua arte, por seu espetáculo. Choveram moedas de euro no copinho velho, amassado, já meio sujo e feio em sua mão calejada, manchada pelo tempo, tão feio, velho, sujo e amassado como a sanfona velha, feia, remendada, puída, surrada e negligente de onde, como por magia, brotaram as mais lindas músicas que escutei naquele dia e há muito não ouvia. Comovido por esse momento, desmanchei-me em emoção. Só Paris tem dessas coisas repentinas e emocionantes no entardecer de seu metrô.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 02/01/2013
Reeditado em 02/01/2013
Código do texto: T4064356
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