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A ÚLTIMA VISITA



Despedir-se de alguém que está indo embora deste mundo é sempre uma experiência dolorosa, e cheia de lembranças e reflexões. Vem à tona muitas situações nas quais fomos felizes, infelizes, ou ficamos confusos, ressentidos, tristes... os sentimentos e situações ressurgem, e pedem resgate. E percebemos que o que valeu a pena, foram os momentos mais felizes. O que ficou de desacertos, tristezas, culpas e ressentimentos, foi tão pequeno e sem peso! As cobranças assumem seu verdadeiro lugar: à esquerda dos dias.

Se tivéssemos sempre essa dimensão verdadeira dos acontecimentos ao longo da vida,  sobre o que vale e não vale a pena guardar, seríamos pessoas bem melhores e mais felizes. Mas sempre acabamos emaranhados nas teias da vaidade que nós próprios construímos, achando que o mundo e as pessoas nos devem alguma coisa, e que por isso, não são dignos de todo o nosso amor, respeito e gratidão.

Minha mãe esteve aqui pela última vez em companhia de minha irmã mais velha, a Dal, há alguns poucos meses. Sua memória um pouco confusa, esquecendo-se de alguns fatos - acho que quando as pessoas envelhecem, elas só se lembram do que é importante. Almoçamos juntas, à mesa de minha sala de jantar, e ela estava feliz. Todas estávamos felizes. Depois, ela - como sempre fazia - pediu-nos para levá-la para um passeio à pé pelas redondezas. Ela sempre adorou visitar o orquidário, para ver as lindas orquídeas enfileiradas como quadros de várias cores, e ficávamos muito tempo caminhando entre elas.

Fomos caminhando rua acima, olhando a paisagem, admirando árvores, passarinhos, esquilos, casas. Chegamos a uma pracinha, onde nos sentamos para descansar. Alguns canários da terra brincavam por lá. O céu cinzento e pesado como chumbo começou a dar sinais de que iria dissolver-se a qualquer momento, e decidimos voltar para casa. No meio do caminho, a chuva começou.

Ela queria, do alto de seus 85 anos, sair correndo pela rua a fim de escapar da chuva, e eu tentando convencê-la de que de nada adiantaria:

-Mãe, não tem marquise, e a casa ainda está longe. De qualquer forma, chegaremos molhadas! Que pelo menos, cheguemos inteiras!

Estávamos felizes, eu, minha mãe e minha irmã. Dentro de mim, em algum lugar secreto, alguma coisa me pedia que prestasse bastante atenção àquele momento. Segurei-a pelo braço, morrendo de medo que ela caísse no asfalto, e ela, me puxando, me fazendo andar mais rápido, e a gente ria...

Na ladeira que leva até minha casa, não aguentando mais, parei para descansar sob o telheiro do portão do vizinho, e ela ficou na chuva, incentivando-nos: "Vamos embora!" Eu e minha irmã, cansadas, sempre admiradas com a força que ela tinha. Ao chegarmos em casa, inevitavelmente molhadas (mas felizes), fiz um café e pus a mesa para o lanche.

Ela reclamou que estava com azias, e com um muxôxo, nos disse: "Acho que eu não vou muito longe, não..." Nós rimos, depois da poeira que ela tinha acabado de nos obrigar a comer: "Você vai ser como a Tia Rosa: vai viver cem anos!"

Ontem, olhando para ela entre todos aqueles tubos, braços inchados, pálpebras cerradas, tentei imaginar por onde ela estaria andando, e se poderia me ouvir e lembrar-se de nós. Falei com ela sobre a sua última visita, revivendo na memória aquele dia tão feliz. Falei de minha gratidão e no quanto ela fora uma boa mãe para nós. Coloquei um de seus CDs para tocar, na esperança de que ela pudesse ouvir a música.

Agora, é esperar que aconteça o que está acima de nossa vontade, e que não necessita de nossa interferência. Agora, é esperar...
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 31/12/2012
Reeditado em 03/04/2015
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