LEMBRANDO DE DONA CANÔ, BETHÂNIA E CAETANO

“Sinto saudade de tudo que marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando sinto cheiros,
Quando escuto uma voz, quando me lembro do passado,
Eu sinto saudades...”

Neste momento em que o Brasil reverencia D. Canô por sua brilhante passagem pela terra sirvo-me da inspiração de Clarice Lispector para matar minha saudade, lembrar saudosamente da figura ímpar, a matriarca da família Veloso. Parece ontem, final dos anos 60, tínhamos nos mudado de Itabuna para Salvador e, depois de passar por alguns bairros, fomos morar no Tororó, onde nos tornamos vizinhos dos Velosos, de Clara, Caetano e Maria Bethânia.

Minha mãe, ilheense muito extrovertida, logo fez amizade e se tornou tão próxima de D. Canô e de Bethânia, que a artista em suas vindas a Salvador, ia para a cozinha preparar-lhe moquecas. Dizia Bethânia que esta era a sua especialidade na arte culinária.

Era época de ditadura militar, regime que não traz boas lembranças, mas eram anos do Festival de Música da Record, anos de criatividade, ousadia, Alegria Alegria, Divino Maravilhoso. O clima dos anos 60 mesclava o medo e a audácia, a repressão com a vontade de ser livre. Vivendo estes momentos, que resultaram, inclusive, no exílio de Caetano Veloso é que, vez por outra, quando Bethânia chegava do Rio de Janeiro, eu era o encarregado de buscá-la no aeroporto. Vizinho é para estas coisas! (Não fiquem com inveja. Não tenho culpa se não foram vizinhos de artistas!).

Numa destas oportunidades, ao retornar do aeroporto, fiquei para almoçar na casa de D. Canô. A casa fervilhava de artistas e amigos. Eu no meio, meio sem jeito, sem papo para aquela gente, alguns muitos famosos, como Lennie Dale (o bailarino), Gilberto Gil, Gal Costa, Gessy Gesse, então mulher de Vinícius de Moraes, e assim por diante. Caetano nestes ambientes sempre me pareceu calmo, meio afastado, calado, diferente de Bethânia. Num dado momento, D. Canô, notando com sua sensibilidade que um estudante de agronomia naquele ambiente era um peixe fora d’água, me pegou no braço e chamou: "Caetano está sozinho no quarto tocando, venha ver".

Entrei acompanhado de D. Canô, Caetano estava com o violão, cantava baixinho. Quando terminou, voltou-se para a mãe e disse que era uma música nova, ainda por gravar. Hoje, quando ouço Saudosismo, na voz de Gal Costa ou do próprio Caetano, sinto os privilégios que a vida me proporcionou. E, para amenizar a saudade, debruço-me para escrever este texto. É uma forma de viver novamente a presença de D. Canô, lembrar as lições que nos deixa e relembrar a felicidade de ouvir, de modo inédito, seu genial filho Caetano Veloso. D. Canô parte, seus exemplos permanecem.



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Saudosismo
(Caetano Veloso)

Eu, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
Um violão guardado
Aquela flor
E outras mumunhas mais

Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar tentamos inventar
A felicidade, a felicidade

Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois

Já temos um passado, meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo, lobo bobo
Eu, você, João

Girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah! Como era bom
Mas chega de saudade
A realidade é que
Aprendemos com João
Pra sempre
A ser desafinados
Ser desafinados

Chega de saudade
Chega de saudade!
Ygor Coelho
Enviado por Ygor Coelho em 29/12/2012
Reeditado em 14/01/2013
Código do texto: T4058528
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