Cartas ao Bom Noel

Fui convidado nas vésperas do natal para ser voluntário nas leituras de cartinhas para o Papai Noel. Aceitei prontamente já que sou muito curioso e como é regra, todo curioso tem vontade de ler as correspondências dos outros. Eis que chegou o dia, vestido conforme a regra estava lá uma hora antes de o local abrir, demonstrando o tamanho da minha ansiedade, quando o trac, trac do ponto pôde ser ouvido o coração disparou e as mais loucas fantasias povoavam minha mente. Por exemplo, o desvario de um soldado Americano, que pede ao Papai Noel que leve uma morena de ancas largas e seios fartos ao seu acampamento no Afeganistão, ainda exige que a morena saiba fazer frango com quiabo e angu mole. Surgiu-me o disparate de uma escola americana do Estado do Texas em que os alunos pedem transferência para o Brasil em 2013, esta eu fiz questão de abortar na fase de construção do delírio, pois se é de balas que eles estão fugindo aqui as crianças são alvos no meio das ruas. Assustei com a responsável pelos voluntários tocando levemente meus ombros com seu hálito de melancia e um gostoso cheiro de perfume que infelizmente não consegui identificar, não que não tivesse tentado. Porém o registro da minha memória olfativa não tem legendas. Eu estava bobamente vivendo o que escritos surreais ditavam, ainda bem que lá fora um carrinho de CDs tocava a canção do natal, pude usar como álibi que viajava na harmonia. Eram muitas e muitas cartas, coloridas, monocromáticas, limpas, engorduradas. Uma infinidade de crianças de todos os sexos de todos os nomes e com certeza de todas as cores. Chamou a minha atenção uma destas menos higiênicas que trazia um nome de personagem importante; Kate Perry Aparecida Soares de Jesus abri cuidadosamente e vi que o interior era menos sujo que o envelope, as letras eram de fôrma e denunciava certa dificuldade na escrita. A folha usada era de caderno de desenho sem arame, pois na parte de cima do recorte havia um rasgo em diagonal. Kate Perry começava sua cartinha agradecendo Papai Noel pelo presente do ano passado, mas não queria que mandasse caixa de bombom, pois sua mãe pega os melhores e leva para os filhos da vizinha, pede ainda que o bom velhinho faça o pai dela deixar de tomar bebidas alcoólicas, que todos os dias que ele bebe fala que vai colocar fogo na casa e se isso acontecer não sabe como vão fazer para dar outra casa para o dono, pois moram de aluguel. Um grande envelope marrom destes que se enviam muita coisa pelo Sedex, estava muito bem colado e trazia o nome Felipe Junior, muito bem lacrado e misterioso para alguém que quer facilitar ao máximo a visualização do seu pedido, este era o inverso. Foram quase três minutos a labuta até chegar-se ao interior, para a surpresa de todos havia uma foto ampliada onde o remetente estava sentando de frente a uma pequena casa pintada de azul e as janelas quadriculadas de branco, um pequeno passeio e algumas flores denunciava que era moradia recente. Ao lado dele estava a mãe o pai e mais três meninas que provavelmente eram suas irmãs. Também havia um bilhetinho que faço questão de transmitir na integra; “Querido Papai Noel, estou muito feliz e este ano não vou lhe pedir presentes, meu pai voltou a morar conosco e reformou toda a nossa casa, minha mãe está muito feliz porque ele pintou a casa de azul para dizer que aqui não haverá mais briga. O Conselho Tutelar devolveu minhas irmãs e agora todas as noites jantamos juntos numa mesa de madeira que seu Juca do Armazém nos deu. Sabe Papai Noel, todas as vezes que eu chorava pedia para Jesus fazer meu pai voltar para casa e minha não sair mais para a rua todas as noites, pois era só assim que o Juiz deixaria minhas irmãs voltarem para casa, eu falei também para Jesus que se isso acontecesse para mim eu iria pedir ao Senhor que entregasse o meu presente à outra criança, pois já estava muito bom. Mas Papai Noel eu preciso te pedir uma coisa, mas acho que o senhor vai ficar com raiva, não é carrinho nem bola nem bicicleta! Lembra que eu falei que já estava feliz? Pois é. Eu quero que o senhor dê para alguém o bebê que está na barriga da minha mãe. Por que ela está grávida e não é do meu pai! É do seu Juca do armazém que deu a mesa para nós. Olha e ouvi quando minha mãe falou com ele que se meu pai descobrir ela morre.