Sincronia

Mote:

"O eu se torna um espelho vazio" G. Lipovetsky

Desceu do ônibus e foi levado pelo fluxo de pessoas que formavam rios sobre o leito das calçadas. Tinha que manter seus passos em consonância com os das pessoas à volta. Às vezes pensava nisto, se parasse de repente, se fizesse um movimento mais brusco, mais imprevisível, isso iria causar transtornos para as pessoas que fluíam. Procurava não causar transtornos. Foi com esse cuidado que, num movimento síncrono, entrou na cafeteria, como costumava fazer todo o dia.

A cafeteria ficava a meio caminho do ponto de ônibus e da repartição. Agradava-lhe sentar na banqueta mais afastada dos rumores da calçada, onde havia certa privacidade e se poderia abrir o jornal e ler uma ou duas notícias, enquanto aguardava a média e o chapado.

Duzentos e cinqüenta e três passos da cafeteria ao prédio da repartição. Tomou o elevador, cumprimentou algumas pessoas e entrou na seção de Arquivo Geral.

O prédio era uma construção do início do século passado e acomodava o acervo de registros civis e criminais das pessoas do Estado de São Paulo. Acomodadas em caixas de papelão, dispostas em prateleiras, havia milhões de fichas, em quilômetros de estreitos corredores – um lugar pouco iluminado, úmido e empoeirado.

Serviço bastante simples. Chegava, recebia umas duzentas fichas preenchidas por pessoas que queriam tirar uma nova carteira de identidade ou um atestado de antecedentes criminais. Deveria conferir os dados que estavam nessas fichas com aqueles que estavam nas fichas arquivadas. Se os dados batessem, ele dava um visto e despachava a ficha, caso contrário teria que levar a situação ao chefe. O dia ali transcorria com uma previsibilidade que lhe agradava. Agradava-lhe o previsível. Gostava de planejar com antecedência os fins-de-semana, as viagens de férias, o casamento, os filhos, a aposentadoria. Tudo estava previsto, tinha até alguns detalhes anotados em pequeno caderno de capa dura.

Como todos ali, já olhara a sua própria ficha de identificação. Incomodava-lhe a fotografia 3x4, um rapaz imberbe de quatorze anos - não se reconhecia nele.

Vezes tinham que pensava nas pessoas das fichas. Demorava-se mais numa fotografia, se detinha numa idade, numa profissão ou num outro aspecto que lhe despertara interesse. Tentava adivinhar-lhes os desejos, as crenças, os temores. Imaginava, então, o cotidiano daquela pessoa, reconstruía pela fisionomia as suas paixões e acabava por esculpir detalhes tão realistas que, ao fim de alguns minutos, sentia ter nas mãos uma vida mais vívida que a sua. Ocorria-lhe, então, de ser a sua própria vida uma invenção, uma ficha, um esboço. E não conseguia, nem com esforço, acreditar em algo que fosse inegavelmente verdadeiro.

Nessas ocasiões, os colegas mais próximos percebiam-no mais taciturno que de costume. Invadia-lhe uma náusea, um sentimento de fraqueza, uma incerteza, que nada parecia aplacar.

Nesses dias, demorava mais para concluir o seu trabalho, perdia o ritmo. Mas esses eram dias singulares. No mais das vezes, ele fazia com destreza o seu serviço, tomava o elevador e alcançava um dos afluentes que o levaria em casa.