Enquanto Não Chega
Não sei ao certo porque adentrei naquele lanche. O ambiente era espaçoso, sem dúvida, porém antigo e com ares de abandono. Necessitava de urgente pintura e um olhar mais atento denunciava que os ônibus, portadores de lucro e confusão, escolheram outro recanto para abrigo temporário.
A variedade dos quitutes era pouca, limitando-se ao essencial. A balconista, uma pequena jovem de cabelos louros, olhos castanho-escuro, sobrancelha delgada, esforçava-se por atender-me bem. Minha presença causou-lhe embaraço e incômodo? Seria um reflexo do cansaço que sentia pela viagem? Procurei esboçar um leve sorriso, para atenuar-lhe os receios e pedi um café com leite e um saco de biscoitos de polvilho. Notei que ela tremia ao trazer-me o pedido. Ficou evidente isso ao assinalar na ficha o valor dos comestíveis. A caneta rascunhava o papel em tom nervoso. Agradeci e caminhei em direção às mesas.
Ficou a impressão de que ela sentira um grande alívio por conseguir atender-me. Devia ser nova no serviço. Minha figura não era tão intimidadora. Ou seria? Talvez o próprio Minotauro se acostumasse ao convívio consigo mesmo, adquirindo o extravagante contorno de naturalidade. Cada um de minha trupe virou-se como pôde e trouxe seus próprios pedidos. Fizeram-me companhia à mesa, juntando-se ao meu injustificado mutismo. Os músculos cansados da viagem, o calor, o suor preso ao corpo; todo o conjunto me envolvia em medonha atmosfera.
De um relance minha atenção foi desviada para um grupo que resolvera fazer uma parada no mesmo local. Uma mulher, na casa dos 30, assentou com dificuldade um velho em mesa vizinha à nossa.
Se o meu aspecto não devia causar agrado, muito menos o dele. Vestia-se com sobriedade, digna da idade. Mas o que chamou minha atenção foi a sua bengala. Repousou-a ao colo. Era de uma madeira lustrosa e fino acabamento. No cabeçote havia uma figura esculpida por valorosa mão de artista. Ele alisava-a com carinho, transmitindo-lhe uma afeição que devia querer em sua vida.
- Não tem o que o senhor quer! Disse a mesma moça que o assentou, de modo que achei ríspido. Ele fez com que ela aproximasse o ouvido de sua boca.
- Olha, pai, não tem suco de laranja natural, tudo aqui é artificial. O senhor sabe o estrago que essas coisas causam no senhor, ainda mais em viagem. E quanto ao café, Deus me livre. O senhor sabe o que o café faz no seu estômago. Vou pedir água e pão com manteiga. Nada de salgados.
Quando a mulher afastou-se, notei que ele estrangulava a figura da bengala. Toda a sua decepção, angústia, revolta pela frágil condição era agora transmitida ao objeto. Logo, talvez arrependido, ou conformado, ele interrompeu o gesto. Passou a alisar a peça, como a pedir desculpas. Era a sua única e sincera amiga: tudo suportava sem reclamar. A bengala era o seu apêndice. Ambos converteram-se em instrumentos que viviam conforme a vontade dos outros. Percebi os seus olhos úmidos. A boca seca. Desviou o olhar para a figura na bengala. Soltou um suspiro.
Nosso grupo terminou o lanche e saímos. A balconista sorriu quando passei por ela:
- Obrigada pela preferência, agora ela estava mais segura.
Sorri e respondi com um aceno de cabeça. Logo à saída vi meu reflexo em um espelho e lembrei do velho: olhei para a mesa na qual se encontrava. Ele bebia a água diante de uma travessa com pão. Ao pagar a conta um pensamento atordoou-me: atingiria um dia uma condição análoga à do velho? Transformar-me-ia em um objeto, sem poder expressar minha vontade e não poder comer, ou fazer, o que me aprouvesse? Enquanto esse dia não chega, entrei no carro e acelerei, procurando deixar na margem da estrada o velho, a bengala e, principalmente, a sombra daquele futuro.
Não sei ao certo porque adentrei naquele lanche. O ambiente era espaçoso, sem dúvida, porém antigo e com ares de abandono. Necessitava de urgente pintura e um olhar mais atento denunciava que os ônibus, portadores de lucro e confusão, escolheram outro recanto para abrigo temporário.
A variedade dos quitutes era pouca, limitando-se ao essencial. A balconista, uma pequena jovem de cabelos louros, olhos castanho-escuro, sobrancelha delgada, esforçava-se por atender-me bem. Minha presença causou-lhe embaraço e incômodo? Seria um reflexo do cansaço que sentia pela viagem? Procurei esboçar um leve sorriso, para atenuar-lhe os receios e pedi um café com leite e um saco de biscoitos de polvilho. Notei que ela tremia ao trazer-me o pedido. Ficou evidente isso ao assinalar na ficha o valor dos comestíveis. A caneta rascunhava o papel em tom nervoso. Agradeci e caminhei em direção às mesas.
Ficou a impressão de que ela sentira um grande alívio por conseguir atender-me. Devia ser nova no serviço. Minha figura não era tão intimidadora. Ou seria? Talvez o próprio Minotauro se acostumasse ao convívio consigo mesmo, adquirindo o extravagante contorno de naturalidade. Cada um de minha trupe virou-se como pôde e trouxe seus próprios pedidos. Fizeram-me companhia à mesa, juntando-se ao meu injustificado mutismo. Os músculos cansados da viagem, o calor, o suor preso ao corpo; todo o conjunto me envolvia em medonha atmosfera.
De um relance minha atenção foi desviada para um grupo que resolvera fazer uma parada no mesmo local. Uma mulher, na casa dos 30, assentou com dificuldade um velho em mesa vizinha à nossa.
Se o meu aspecto não devia causar agrado, muito menos o dele. Vestia-se com sobriedade, digna da idade. Mas o que chamou minha atenção foi a sua bengala. Repousou-a ao colo. Era de uma madeira lustrosa e fino acabamento. No cabeçote havia uma figura esculpida por valorosa mão de artista. Ele alisava-a com carinho, transmitindo-lhe uma afeição que devia querer em sua vida.
- Não tem o que o senhor quer! Disse a mesma moça que o assentou, de modo que achei ríspido. Ele fez com que ela aproximasse o ouvido de sua boca.
- Olha, pai, não tem suco de laranja natural, tudo aqui é artificial. O senhor sabe o estrago que essas coisas causam no senhor, ainda mais em viagem. E quanto ao café, Deus me livre. O senhor sabe o que o café faz no seu estômago. Vou pedir água e pão com manteiga. Nada de salgados.
Quando a mulher afastou-se, notei que ele estrangulava a figura da bengala. Toda a sua decepção, angústia, revolta pela frágil condição era agora transmitida ao objeto. Logo, talvez arrependido, ou conformado, ele interrompeu o gesto. Passou a alisar a peça, como a pedir desculpas. Era a sua única e sincera amiga: tudo suportava sem reclamar. A bengala era o seu apêndice. Ambos converteram-se em instrumentos que viviam conforme a vontade dos outros. Percebi os seus olhos úmidos. A boca seca. Desviou o olhar para a figura na bengala. Soltou um suspiro.
Nosso grupo terminou o lanche e saímos. A balconista sorriu quando passei por ela:
- Obrigada pela preferência, agora ela estava mais segura.
Sorri e respondi com um aceno de cabeça. Logo à saída vi meu reflexo em um espelho e lembrei do velho: olhei para a mesa na qual se encontrava. Ele bebia a água diante de uma travessa com pão. Ao pagar a conta um pensamento atordoou-me: atingiria um dia uma condição análoga à do velho? Transformar-me-ia em um objeto, sem poder expressar minha vontade e não poder comer, ou fazer, o que me aprouvesse? Enquanto esse dia não chega, entrei no carro e acelerei, procurando deixar na margem da estrada o velho, a bengala e, principalmente, a sombra daquele futuro.