TEMPO DE PERDOAR

A vida é realmente surpreendente!

Numa dessas belas tardes de inverno, onde o frio nos brinda com o calor repentino de um abraço inesperado e amigo, encontrava-me a trabalho, no Fórum Criminal de São Paulo, quando ao adentrar na Sala dos Advogados observei, tristemente sentada num dos bancos da Repartição, uma senhora aparentemente abatida e visivelmente pálida e debilitada.

Discretamente passei a observá-la com mais atenção, pois seu rosto me fazia lembrar alguém, que no momento não soube identificar. Curiosa com a figura triste daquela senhora, que já trazia a cabeça coroada de fios prateados pelo tempo, não mais resisti e me dirigi a ela.

Com certo constrangimento, pois não sabia como meu gesto seria recebido, perguntei-lhe se estava passando bem, se queria que eu lhe trouxesse água ou um cafezinho. A Senhora então me olhou agradecida e disse estar bem mas aceitou a gentileza do cafezinho oferecido. Solicitamente sentei-me ao seu lado na esperança de ainda conseguir reconhecê-la.

Agora mais próxima, pude perceber a extensão do problema daquela doentia figura. Tinha ao redor dos olhos, profundas e negras olheiras que denunciavam longas noites insones e seu olhar triste e distante refletiam indiscutível sofrimento. Seu, já curvado, corpo denunciava grande fragilidade e falta de coordenação motora ao tentar sustentar-se com as próprias pernas, motivo pelo qual trazia consigo discreta bengala.

Quando levantou timidamente seus olhos em direção aos meus e fitou-me também curiosa, tive um ligeiro sobressalto, aqueles olhos azuis claros, agora mais claros ainda sem a moldura de um rosto pintado... era ela, não havia dúvidas, jamais esqueceria aquele olhar.

E naquele momento enquanto a Senhora dos olhos azuis me fitava, já contrariada com a minha indiscrição, como num filme, passou ligeiro pela minha memória outro momento, outra história com a mesma mulher do mesmo olho azul .

Trinta anos atrás, Eu uma menina ainda, 14 anos. Meu primeiro emprego num escritório de advocacia localizado em local movimentado e nobre do centro de São Paulo.

Há trinta anos, os tempos eram outros, quatorze anos era idade de pureza, de timidez, de respeito com os mais velhos, de sonhos de futuro ainda meio embalados entre um sorriso tímido de moça que se preza e um riso fácil e infantil de menina sapeca. Eu era assim, moça tímida, menina sapeca, cheia de sonhos... grandes sonhos.

Havia conseguido aquele emprego através da minha irmã, que a conhecia, embora eu mal soubesse atender um telefone, pois não era uma tecnologia tão ao alcance de todos como agora, sabia ler , escrever razoavelmente bem e datilografar.

Como minha família era muito pobre e numerosa e a maioria composta por mulheres, saíamos todas muito cedo para trabalhar, nunca pudemos nos dar ao luxo de ficar em casa esperando o “príncipe encantado”. Nosso encantamento era o trabalho que conseguíamos para termos um pouco de dignidade na vida dura que levávamos desde que chegamos do estado do Paraná.

E dessa forma, encontrava-me ali, naquele momento da minha história, diante de uma mulher loura, distinta e belíssima, fitando nos meus olhos tímidos, seus lindos e desconcertantes olhos azuis.

O nome dela era Claudia, doutora Claudia, como exigia que a chamássemos, pois era advogada. Alta, corpo bem feito, elegantemente trajada, sempre bem penteada e maquilada, saltos sempre muito altos, um batom vermelho sempre à mão. Era ela, a dona dos olhos mais azuis que eu já vira. Doutora Claudia. Que a partir daquele momento era minha chefa.

E como chefe, ela agiu, o tempo todo, desde o primeiro momento, quando disse, em seguida as apresentações, que ali não haveria moleza, eu que prestasse atenção ao que ela falava porque não gostava de repetir ordens e nem tinha tempo para isso. Além do mais eu que não pensasse que só ficaria sentadinha de "dondoca" no seu escritório, havia muito serviço externo a fazer e, além disso, a limpeza do escritório de dois andares seria tarefa também minha.

Não falou sobre o salário nem amenidades alguma. Foi seca e direta. Fiquei trabalhando naquele mesmo dia, e no final da tarde, já inicio da noite retornei para casa com menor quantidade de alegria no coração, do que os respingos de água sanitária que havia na minha saia simples (comprada às duras penas para aquele primeiro dia de emprego onde teriam dito que eu seria secretária), respingos adquiridos durante a lavagem dos dois banheiros que compunham aquele bonito e amplo escritório.

Amplitude e beleza que eu pude medir cada centímetro diariamente passando pano e esfregando cada cantinho, beleza que me custou mãos e joelhos ressecados de tanto removedor e cera que me via obrigada a passar no salão todos os dias, para conservá-la.

Assim foram todos os meus dias como secretária da doutora Claudia. Às vezes ela me permitia atender ao telefone, mas em seguida tomava-o bruscamente das minhas mãos dizendo que eu tinha muito que aprender. E aprendi.

Entre uma esfregada e outra dos banheiros, aproveitei cada segundo do meu tempo naquele escritório, li todos aqueles livros, de direito, de psicologia, de culinária, de boas maneiras, de sexo, enfim o imenso arsenal cultural que havia na estante da recepção, observei como as pessoas falavam e se comportavam. Entre berros e humilhações, aprendi a atender ao telefone. No final de cada dia de trabalho, sentava por alguns minutos na “minha” escrivaninha de “secretária” e enxugando discretas lágrimas absorvia cada ensinamento, cada nova palavra que me ia dizendo meus caridosos e inesquecíveis amigos livros.

A Doutora tinha um noivo, Estênio, grande, arrogante, um jogador compulsivo de “jogo do bicho”, todos os dias entre mil sonhos e acrobacias adivinhatórias, escolhia o bicho que ia dar no dia e descia a praça para fazer sua aposta. Vício que custava caro à doutora Claudia, pois Estênio não trabalhava, aquela brincadeirinha era seu “ganha pão”. Quando acertava o bicho tinha dinheiro, quando não, eram semanas ou meses inteiros explorando a doutora diariamente para poder manter seu dispendioso vício. Percebia-se que isso a irritava e quanto mais irritada ela ficava mais dura e severamente me tratava. Ele era o que se poderia chamar de um mau caráter.

Não tinha escrúpulos nem respeito por nada nem ninguém. Só queria curtir a vida e explorar a noiva, que provavelmente percebia isso, mas por algum motivo que eu não saberia explicar, nunca deu um basta na relação doentia dos dois. Doentia, porque eram cenas chocantes de ciúmes misturadas com ataques ofensivos e todos os “bichos” que vocês puderem imaginar.

Não fiquei muito tempo no escritório da doutora Claudia, mas foi o suficiente para aprender pequenas e grandes lições.

Teria ficado lá por mais tempo, sou osso duro de roer, não fosse o noivo dela, que não se sentindo a vontade com uma pessoa estranha sempre por perto a observar todos os seus movimentos, resolveu armar-me uma suja cilada para não ter que me pagar pelos meses duramente trabalhados e para livrar-se de vez por todas da minha indesejada presença, que nada lhe rendia, apenas o constrangia, cada dia mais.

Foi numa manhã comum de trabalho, mal eu havia iniciado minhas tarefas no escritório, quando Estênio chegou juntamente com a doutora Claudia. Estranhei, não era comum ele por lá naquela hora do dia, ainda mais pela manhã, era homem de dormir até a metade do dia, para depois sair da “toca”.

Assim que chegaram, Estênio, puxando pelas mãos a noiva, chamou-me e dedo em riste fez-me terríveis acusações, disse ter notado que eu vivia lendo os livros caríssimos do escritório sem permissão de nenhum deles no horário de serviço. Coisa que nunca fiz.

Mas a mais chocante, terrível e caluniosa acusação estava por vir. Aos gritos disse que não toleraria mais que eu permanecesse por ali, pois os estava roubando descaradamente, disse que ele e a doutora sua noiva tinham dado por falta de uma meia dúzia de livros da coleção mais cara que havia no escritório e que por este motivo eu que fosse embora sem direito a nada e me desse por satisfeita se eles não chamassem a polícia para mim.

Naquele momento toda a vergonha e dor do mundo sobre mim se abateu desesperada e chorosa, falei da minha inocência e quis me dirigir à estante dos livros para provar a eles que os livros todos estavam lá no mesmo lugar de sempre, muito bem cuidados por mim como sempre foram e onde sempre estiveram. Honestidade é um valor absoluto na minha vida.

Estênio, astuta e maliciosamente, armou tudo direitinho e manipulando a noiva , como sempre o fizera, convenceu-a de que falava a verdade, e para isso é lógico, prévia e desonestamente , no dia anterior deve ter sorrateiramente retirado os livros aos quais se referia , imputando-me a autoria do infame crime. Percebi de imediato a arapuca que eu caira quando na estante, não encontrei mais alguns dos meus companheiros favoritos. Não havia mais nada a falar. Não sabia como me defender.

Olhei para a doutora Claudia, na esperança de que ela acreditasse em mim, ela que sabia o quanto eu sempre tinha me comportado de forma irrepreensível e de maneira honesta nas mínimas coisas que eu fazia no desempenho das minhas tarefas, quantas vezes confiou-me quantias razoavelmente elevadas de dinheiro para que eu depositasse nalgum banco, quantas vezes esqueceu valores e jóias pelas gavetas do escritório para ter a satisfação de vê-las do mesmo jeito no dia seguinte sem que eu nunca tivesse de lá nada retirado. Somente ela poderia defender-me naquele momento, do infame e injusto acusador.

Mas aqueles olhos fitaram-me indiferentes. Quem tinha mais valor para ela. Eu, a “secretária” dos banheiros, ou o seu noivo, companheiro de sempre e para sempre? A resposta veio dos seus olhos frios, azuis, azuis, como nenhum outro conseguiria ser.

Estênio ganhou. Ou perdeu? Saí dali correndo e chorando feita louca pelas ruas do centro de São Paulo, envergonhada e ultrajada cheguei a casa mais cedo e tive todo o tempo do mundo para chorar e chorar antes que meus pais e irmãos também retornassem.

Não contei nada a ninguém, não tive coragem. Era uma história muito feia! Magoaria e ofenderia toda a minha família. Eles estavam tão felizes por eu ter conseguido um emprego de secretária!

Apenas informei que pedira as contas naquela tarde, após a Doutora ter explicado carinhosamente que não teria como pagar-me, pois sua situação não estava boa. É o que sabem dessa história até o dia de hoje.

Durante longo período da minha vida tive pesadelos com estes olhos acusadores. Acordava assustada e chorando algumas vezes, dizendo não ter feito isso, tentando convencer aquele olhar implacável.

Azuis, azuis os mesmos olhos que agora me fitavam curiosos. Os olhos da doutora Claudia.

Voltei a mim, com a doutora colocando a mão nos meus ombros e agradecendo-me pelo café e pela atenção.

Sua voz era débil e seu olhar muito doce. Não pude me conter e a abracei comovida. Em seguida pedi desculpas dizendo que a confundi com alguém que conhecia há muito tempo. Mas não me identifiquei, falei apenas o primeiro nome, que jamais a faria lembrar-se de mim. Não sei por que, mas a doutora sentindo a sinceridade do meu abraço começou a contar outra comovente e triste história.

Disse que era advogada havia muito tempo, mais de 40 anos, e que já tivera tudo de bom que a vida podia oferecer, um bom e conceituado escritório, pessoas boas ao seu redor e um noivo querido que era o seu fiel companheiro até os dias presentes. Contou da longa e dolorosa doença que abateu o noivo há trinta anos, doença que a levou quase a falência, pois o então noivo sofria de um mal que a medicina mais avançada não conseguia identificar e conter. Que era apaixonada pelo noivo e que fez o que pode para amenizar suas dores que tinham causa desconhecida. E que a sua situação piorou quando descobriu, num exame de rotina, que estava com câncer, e que desde então se submetia a tratamentos agressivos e dolorosos, inclusive já tendo feito mastectomia em uma das mamas. Que embora, a doença tenha dado sinais de retrocesso, continuava regularmente sob quimioterapia e radioterapia o que lhe causava sensações terríveis de náuseas e trazia seqüelas irreparáveis em todo organismo já irreparavelmente comprometido pela doença.

Aquela triste história levou-me as lágrimas, que procurei disfarçar da melhor maneira possível para não constrangê-la. Disse-me ela, que continuava trabalhando, pois a situação era tal que não poderia dar-se ao luxo de parar, que naquele dia estava especialmente debilitada e que com muito custo conseguira chegar ao Fórum, que os poucos trabalhos que ainda fazia se devia à solidariedade de alguns poucos amigos que restaram e que lhe repassavam algum serviço mais fácil para que ela continuasse juntamente com o companheiro Estênio, que não mais saia da cama, a sobreviver.

Ouvi cada detalhe daquela história com o coração na mão. Pedi a Deus que ela não me reconhecesse, pois não queria pesar ainda mais seu sofrimento e dor.

Animei-a seguir firme, e lhe disse que assim que a vi sabia que ela era uma guerreira e vencedora. Que eu havia sentido imensa simpatia por ela e que sua história de vida era triste, mas muito bonita e que todos os nossos caminhos se cruzam conforme a vontade do nosso Pai maior e que eu tinha certeza de que daquele dia em diante seríamos grandes amigas e que como eu gostava muito de ler e escrever poderia ajudá-la com alguns trabalhos que ela não mais se sentia apta a fazer, devido às seqüelas da terrível doença.

Conversamos durante muito tempo, a doutora Claudia riu das minhas brincadeiras e comoveu-se com minha atenção e carinho por ela. Disse a certa altura que parecia me conhecer a muito tempo ao que respondi ser apenas impressão pela simpatia mútua que sentimos uma pela outra.

Em dado momento da conversa percebi o quanto eu havia sido egoísta todos aqueles anos, em nenhum momento vislumbrei a bondade de Deus no que me acontecera na adolescência, desde o dia em que eu conhecera aquela senhora. Sentia-me ofendida e magoada todos estes anos, com algo que na verdade eu só teria a agradecer, pois foi graças à oportunidade do meu primeiro emprego que a Doutora havia me dado, mesmo sem que eu soubesse ao menos atender um telefone, que pude aprender muito. Lendo seus belos livros de direito e história, foi que decidi que um dia seria advogada, grandiosa e importante como ela um dia foi.

Como ela ainda é. Porque seus olhos azuis, hoje, refletem a bondade que estava guardada em seu coração e que a vida permitiu que aflorasse de sua alma, infelizmente, lapidada pelo sofrimento e pela dor.

Podem acreditar, somos amigas e ligo diariamente para saber dela. Cada nova conversa, tento animá-la e renovar suas esperanças, falando do amor infinito de Deus e das nossas fragilidades e falhas diante da vida. E consigo convencê-la que a vida vale à pena, pois a cada segundo dela , aprendemos uma nova lição. Perdoar foi a lição maior e mais bela, que neste episódio, a vida me ofereceu e que, hoje, ofereço a cada um de vocês.

Flor de Agosto
Enviado por Flor de Agosto em 25/12/2012
Reeditado em 25/12/2012
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