Poeira de estrelas
As minhas teclas adquirem uma coloração escura. Diria que é sujeira, um certo pó acumulado, misturado com uma certa gordura dos dedos que forma uma película. Devo limpa-las mais uma vez. Ocorre-me que o que escrevo possa estar provocando essa sujidade que conspurca a clareza das teclas. Não saberia dizer se a sujidade passa para o que escrevo. Então numa reflexão geral e abrangente vejo que o pó se acumula sobre todas as coisas. E, se não houver que os limpe, todas as coisas estarão cobertas pela camada que se sobrepõe.
Essa camada que se adere cai do céu, incessantemente, desde que o mundo é mundo, e cobriria tudo se aqui não estivéssemos para varrer, todos os dias. Não as minhas teclas, não as varro, passo por elas com as polpas dos dedos, acidentalmente, aleatoriamente.
Se há sentido no que saí desse premir de teclas isso se deve a um misterioso fluxo que ocorre dentro do cérebro. Uma massa gelatinosa de células tão protegida dentro da caixa óssea do crânio. Ali o pó-matéria não entra, mas entram os sentidos, as impressões, os significados, muitos deles semelhantes ao pó que tem que ser removido todos os dias. Esse é um trabalho incessante, rotineiro que tem que ser feito, aonde não alcançam os dedos. Como varrer o cérebro, me pergunto? Seria através do sono? Deixaria-me ficar à mercê da sorte, entregando-me desacordado ao mundo escuro da noite, respirando ritmicamente, enquanto o cérebro descarrega as suas tensões acumuladas e se refaz para um novo dia. Esse é o varrer do cérebro? Tudo daria certo e acordaria renovado para o novo dia se um sonho não tivesse se instalado sorrateiramente e provocado emoção. O corpo se debate, os músculos se contraem e as cenas passam diante dos olhos. Verdades? Ilusões? Eu criei esse mundo absurdo de sombras e cores e sons? Acordo emocionado. Ainda é noite, os cães ladram longínquos. Não me lembro mais do que sonhei, mas não foi agradável. Ou foi? Certo que foi um mundo consistente, enquanto durou. E durou uma eternidade.
Ainda é noite. Levanto e venho ao teclado para encontra-lo escuro, uma película que se aderiu. Varro o teclado com os dedos esperando que eles clareiem. Mas não. Meus dedos estão fixando aleatoriamente a camada enquanto apertam as teclas. Alguma letra pouco usada pode estar ainda perfeitamente clara. Qual seria? Não a encontro. Paro de escrever para limpar o teclado com algodão.