LINHA DE MONTAGEM

Resolvi fazer as compras de natal, também sou filho de Deus e amigo do Cristo. Nem bem saio direito do portão, vejo o vizinho, cujo apelido é gaucho, ajoelhado de mãos levantadas, dois garotos de no máximo doze anos, com uma arma apontada para o seu peito. Era o desfecho de um assalto e os dois meninos fugiram de bicicleta. Fui ver o que podia fazer para ajudar. Nada. O homem me convidou para entrar. Depois de depenado, todo nervoso, o vizinho me diz que estava cortando a grama e os larapinhos chegaram perto do portão e disseram: Tio dá um copo d’água? Ele, o gaúcho, de estatura privilegiada, ombros largos, olhos azuis, cabelos loiros; largou, meio praguejando, a sua máquina de cortar gramas e foi buscar a água. Tantos “lugares para encher o saco e esses negrinhos vão incomodar, exatamente quem está trabalhando”; “isso é o fim do mundo”. Pensava o gaucho. Quando voltou com a jarra, se deparou com um berro bem na fuça. Teve que abrir o portão, desligar o alarme e se ajoelhar sob a mira de um 38; até que um dos “bandidinhos” entrasse na casa e escolhesse o que lhe serviria de moeda troca para, segundo o meu amigo, “sustento de seus anseios e vícios, pois são todos uns “maconheirinhos” desde o berço”.

A situação caótica em que se encontrava o gaúcho, fez com que eu entrasse e o acompanhasse até que chegassem os policiais para fazerem exatamente nada. Ofereceu-me uma xícara de café, que trouxe meio trêmulo; meio não, quase não conseguia segurá-la. “É, onde estamos. Até aonde vai parar a violência nesse país? Nem atrás dos nossos muros estamos seguros.” Essas palavras do meu amigo me fizeram pensar no aparato de segurança que ele tinha e qual seria a sua verdadeira função. Será que não seria para separar os brasileiros mais pobres do capital? Será que não era para servir pura e tão somente a classe dominante, em detrimento de todos os outros brasileiros?

Perto de nós, na sala de estar, pouco depois do assalto, estavam os meninos do gaúcho, brincando de matar pessoas no computador. O sangue jorrava quando acertavam um inimigo e se alegravam. Velho, gay e preto valia mais pontos; gente jovem e bonita que matavam valia um pouco menos. Havia também automóveis que sequestravam e, fugindo da polícia, arrastavam o que viam pela frente. Do mesmo jeito que utilizavam as armas, utilizavam os carros. Era para atropelar e fazer pontos e ainda assim não ser pego pela polícia. Os valores e os pontos seguiam a mesma linha de quando usavam as armas.

A mulher apareceu toda engadelhada, maquiagem borrada, fora chorar no quarto pelas jóias perdidas e pelo susto tomado, não queria assustar mais ainda as crianças com seus lamentos. Assustou-se foi comigo, pensou que era outro assalto e não se acanhou em me dizer que era por causa da minha cor e do meu jeito; o que provocou um breve momento constrangedor que, logo depois foi dissolvido. Tudo ficou por culpa do assalto e dos delinquentes infantis que deixaram todo mundo fora de si; e ouvi muitos “onde já se viu?”

Do meu lado, dois pares de tênis que não foram vistos pelos ladrõezinhos e que valiam o olho da cara. O homem era professor, doutor na faculdade. Gente fina. No canto da sala sobre uma estante toda enfeitada de madre pérolas, uma televisão tão fina quanto um jornal; dessas que fazem até chover. Na TV, ligada e, aparentemente esquecida por força das circunstâncias, a cada segundo se fazia propagandas de produtos que a maioria das crianças não tem acesso nem por nojo. Um automóvel “possante” e exuberante esperava na garagem como um animal atrelado e silencioso. Nos fundos da casa se abria em forma de leque, uma magnífica piscina de água azulzinha e fresca. Como a polícia demorava a chegar fiquei ali na casa. Fomos para perto da piscina, ficamos ali conversando e a situação foi ficando menos tensa a cada instante.

O homem até ligou um aparelho de som com umas músicas meio agitadas para “espairecer”. Uma das músicas dizia que não sei quem era “bruto, rústico e sistemático”, outra dava a entender que só as mulheres traem; tinha umas que banalizavam o sexo e o uso de bebidas alcoólicas, bem como cerveja e pinga; e muitas outras, todas nesse molde. Mas o importante é que distraem não é mesmo?

De vez em quando o tema assalto entrava na pauta e a frase: “onde já se viu tanta violência” emergiam em êxtase. E o gaucho me disse: Foi por Deus! Homem! Foi por Deus! E me batia nos joelhos pensando que eu estava distraído. “Era para eu estar com a arma na cinta. Ainda ontem passou por aqui uns três negrinhos, devagarzinho e olhando para dentro do pátio... Vou buscar lá pra você ver.” Trouxe uma bela pistola a qual não sei a marca, não entendo disso; mas ele disse que não hesitaria em matar aqueles negrinhos se notasse que a integridade física de sua família fosse colocada em risco. Afinal de contas família é família, concorda? “Meu Deus! Onde já se viu tanta violência?”

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 22/12/2012
Reeditado em 08/01/2013
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