UM MILHÃO DE AMIGOS

        Hoje decidi não ter mais um milhão de amigos, como sugeriu Roberto Carlos. Achei que, na minha idade, poderia repensar sobre o assunto e tomei uma decisão. Lembrei dos amigos que enchem minha alma de alegria quando os encontro e quero conservá-los perto de mim. Lembrei também de outros amigos, os que fazem parte da minha vida porque são amigos de meus amigos e com os quais conviverei socialmente, por respeito aos amigos que faço questão de conservar. Alguns desses amigos de meus amigos são pessoas que pouco me acrescentam, mas convivo com eles porque fazem parte de um grupo social maior do que o das minhas relações pessoais. Acolho-os porque meus julgamentos de valores não devem servir para decidir sobre escolhas de meus amigos. Confesso que conviver com esses "amigos" desiguais começa a me tornar menos democrático do que gostaria. Minha tolerância anda em estado crítico e minha diplomacia implodiu. Não me importa mais se meus amigos são "vegetarianos" (criticam aquela picanha gorda assada ao ponto), se acreditam em horóscopo (declinam de seu protagonismo na vida), se acham que cachorro é gente, ou, pelo menos, "inteligente" (e trocam relações humanas por reclusões sem qualquer diálogo que ouse confrontá-las com a realidade), se vão à missa nos domingos , ou ao culto num dia que desconheço (e abrem mão de decidir sobre o que é pecado, ou não). Não me importa se torcem para o Inter, se curtem festa "have", se tomam Kaiser, se "espalitam" os dentes.  Hoje decidi que posso ter bem menos do que um milhão de amigos. Talvez umas três dúzias seja suficiente. Decidi que os amigos que quero junto de mim, quer sejam "vegetarianos", acreditem em horóscopo, achem seus cães inteligentes, sejam religiosos, torçam para o Internacional, gostem de festa "have", tomem Kaiser, "espalitem" os dentes, quer sejam de qualquer jeito diferente do meu, decidi que eles poderão ser meus amigos. E serão, com uma única condição: que me aceitem como sou, embora não compartilhe suas crenças ou escolhas. Isso inclui aceitar um cara que tem idéias próprias sobre a vida. Certamente discutiremos quando algum deles tentar me convencer que comer carne vermelha faz mal à saúde, tentar prever meu futuro, depois de se informar do meu "signo", dizer que seu cãozinho de estimação está triste porque a cadelinha da vizinha morreu. Discutiremos quando um deles tentar me convencer que existe "deus", falar que o Internacional tem melhor time que o Grêmio, que música "have" é melhor que bossa nova, etc.  Mesmo assim, continuarão meus amigos, porque o que define uma amizade é o sentimento nutrido um pelo outro e que está acima de crenças ou escolhas pessoais.
            Meus amigos serão, por certo, uns poucos. Poderemos conversar na piscina num dia quente de verão,  construir uma pizza no forno à lenha da praia, tomar um conhaque à frente da lareira ou um chope no boteco da esquina. Poderemos nos ligar a qualquer hora para pedir um conselho, uma orientação; falar de uma tristeza, ou, mesmo, apenas, para conversar banalidades e nos sentirmos pertencentes a um mundo que eventualmente nos foge. Serão amigos que me escutarão, sem me julgar. Amigos que me aceitarão depois das eventuais bobagens que direi após a bebedeira de uma festa. Amigos que não me condenarão pela bebedeira da festa. Amigos que não me censurarão em público por equívocos que cometi. Amigos que, antes de qualquer comentário sobre atitude minha, farão questão de saber, pessoalmente, as razões de minha atitude.
            A partir de agora, só quero amigos que tenham ombros e ouvidos. Ombros para acolher minha cabeça cansada pelas notícias tristes vindas do coração e ouvidos para acolher as queixas do mesmo coração, ainda que insensatas, porque insensata é apenas a dor de corações desconhecidos. Hoje, quero bem menos do que um milhão de amigos, quero apenas uns poucos, aqueles que caibam num minúsculo vidro de perfume frances.
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 22/12/2012
Reeditado em 22/12/2012
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