O avesso da vida
O avesso da vida trazendo bençãos
"Minha amada, perdoe-me pela demora em responder. Fui dormir um bocadinho...."
Assim comecei a resposta a um e-mail de uma amiga. Minha vida está muito louca desde que meu pai fez a colectomia (retirada do intestino grosso por cirurgia) em decorrência de fortes hemorragias.
Era uma quarta-feira e voltei animada da terapia como sempre. Pretendia chegar em casa, tomar um bom banho e depois dar um passeio com meu amado. Mas foi ele mesmo quem me alertou de que tinha acabado de chegar da casa dos meus pais e que meu pai tinha evacuado sangue, e que estava apenas aguardando que eu chegasse em casa para que o levássemos ao hospital. Fomos informados por meu irmão de que aquele não era primeiro episódio de perda de sangue.
Chegamos ao Pronto-Atendimento do hospital da Unicamp às 22h. Logo fomos atendidos, mas novos episódios se sucederam ininterruptamente. Meu irmão passou aquela noite na sala de espera, e nossa expectativa era a de que nosso pai melhorasse e saísse na manhã seguinte. Mas no amanhecer a equipe de atendimento informou-nos de que ele teria de permanecer internado já que, mesmo com as três bolsas de sangue, ainda estava anêmico, com glicemia alta e as hemorragias não tinham cessado.
Revezamo-nos para que meu pai tivesse alguém sempre ao seu lado, mas a situação era desesperadora... Não era fácil ver ali, deitado e em delírios pelo constante estado febril, aquele homem outrora forte e cheio de vida. Era doloroso demais e, não bastasse isto, ao seu redor tantas outras pessoas em situações de debilidade física e mental.
Na noite do dia vinte e cinco, o médico responsável chamou-me e disse que, se o quadro de meu pai não mudasse, ele teria que ser operado. A princípio, e na inocência, achei bom, pois se ele fosse operado tudo se resolveria. Mas então o médico explicou-me que, por conta da idade avançada e dos problemas cardíacos, havia riscos e ele poderia não sobreviver. Se sobrevivesse, provavelmente dependeria de uma bolsa de colostomia. Por fim, recomendou-me chamar a família para vê-lo. Reunimo-nos todos ao redor de meu pai: os irmãos dele, meus irmãos, minha cunhada, os filhos e as noras. Apesar da atmosfera leve que tentávamos criar para animá-lo, nossos corações explodiam em tristeza e dor.
No dia seguinte o levaram para a enfermaria, e os cuidados dispensados foram exemplares como tinham sido desde o início. Creio que, quando os profissionais envolvidos têm vocação nata e gostam do ofício, não serão as limitações da saúde pública que impedirão o sucesso nos tratamentos. Foi isso que observei com meu pai. A dedicação e o profissionalismo com que o trataram e com que trataram a nós, familiares, esclarecendo sobre os riscos da cirurgia, mas também de sua necessidade naquela hora, já que o caso só se agravava.
No dia vinte e sete meu pais foi submetido a mais de sete horas de cirurgia. Na sala de espera estávamos eu, minha tia e meu primo, e o restante dos familiares mantiveram contato por telefone o tempo todo. Não estávamos muito confiantes, mas foi então que recebemos a ótima notícia: ele não só tinha suportado a cirurgia, como a bolsa de colostomia seria necessária. Atônitos, glorificamos a Deus e fomos para o quarto aguardar sua liberação.
Naturalmente, meu pai estava muito sonolento e confuso. Falamos um pouco com ele e fomos para casa, já que os cuidados pós-cirúrgicos exigiam que ele continuasse na Unidade de Terapia Intensiva, e lá não poderíamos acompanha-lo. Nos períodos de visita, eu e minha mãe permanecíamos ao seu lado o tempo todo, assistimos aos seus momentos de lucidez e outros de delírio, aos cuidados dos profissionais e sua paciência e tranquilidade para submeter-se os procedimentos necessários – o que era um alívio, afinal tudo o que queríamos era vê-lo bem, e as coisas caminhavam nesse sentido, apesar da anemia persistente e da glicemia ainda alta.
Quando meu pai foi transferido para o quarto de recuperação, meus irmãos e meus filhos fizeram-lhe companhia durante as noites e os finais de semana. E, no tempo em que eu e minha mãe passamos a sós (já que ela foi morar comigo durante a internação de meu pai), rimos, brincamos, lembramo-nos de fatos passados e agradecemos a Deus pela melhora dele a cada dia. Eu precisava animá-la do melhor modo possível, afinal ela estava sem os cuidados que o marido havia lhe dispensado durante toda sua vida: era ele quem, nos últimos anos, dava-lhe banho, preparava-lhe as refeições, levava-lhe ao médico, etc.
Todos ansiávamos por seu retorno, mas quando esse dia chegou, minha mãe ficou completamente apavorada, já que não sabia como eu poderia dar conta de todos os cuidados para com ele, como banho, alimentação e curativos. Eu nunca havia sido uma pessoa adepta das tarefas domésticas, tinha pavor de ver ou tratar ferimentos alheios, e ela sabia disso. Mas a vida nos prega peças, e de um dia para o outro nossos caminhos mudam de tal maneira que descobrimo-nos mais fortes. Rezei a Deus para que ele me capacitasse para lidar com tudo o que estava por vir, pedi fé e humildade, e que Jesus me iluminasse com tranquilidade e sabedoria.
E, desta forma e para minha surpresa, superei cada um dos desafios com calma e perseverança, passei a me re-conhecer. É grande a disposição para cada uma de minhas tarefas, desde as domésticas, que atualmente são inúmeras, aos cuidados com meu pai e também com minha mãe, já que agora eu cuido dele e por ele. Minha vida pessoal ficou bastante limitada, tive que me afastar do serviço e, por incrível que pareça, nunca me senti tão bem e realizada trabalhando como agora.
Para completar meus desafios, este último sarau sob minha coordenação estava por vir, a coletânea e todos os preparativos aos quais me propus. Mas... Como dar conta? Mais uma vez recorri a Deus, mantive minha medicação para o transtorno bipolar e estou vivendo um dia de cada vez, trabalhando muito durante os dias e as madrugadas.
Meu pai melhora mais a cada dia, e minha mãe também tem melhorado em muitos aspectos. Creio que o fato de estarmos todos juntos é, sem dúvida, um motivo de grande alegria para todos nós. Nestas horas é que percebemos a importância da família, coisa que por tantas vezes ignoramos pelo corre-corre diário. Com tudo isto, concluo que somos capazes de coisas inimagináveis, e que Deus nos permite experimentá-las e superá-las para mostrar que Ele é presente em nossa vida, transformando-nos sempre que nos colocamos diante Dele.
No fim de tudo, só tenho que render honras e glórias ao Pai Celestial que em tudo é presente na minha vida, e que me dá a oportunidade única de devolver aos meus pais um pouquinho do muito que eles fizeram por mim. Agradeço também a Ele por me permitir realizar mais este sarau, organizar e publicar esta coletânea que é o resultado de minha gratidão ao CENAPEC, ao Portal do Poeta Brasileiro, ao CIS-Guanabara, ao Clube Cultura Artística, à Estação Cultura, a M. Santiago e cada um dos amados que estiveram ao meu lado durante minha jornada literária.
Minha gratidão, respeito, carinho e melhores desejos de um Natal onde Jesus renasça no coração de cada um de nós, e de um novo ano onde não só nossos sonhos se realizem, mas em que nossa capacidade de superação e de encontrar novos e lindos horizontes sejam um marco em nossas vidas. Beijo enorme a todos.