A PROFUNDIDADE DE SER CRIANÇA

A PROFUNDIDADE DE SER CRIANÇA

Acho que toda criança já foi um pouco arqueóloga na vida. Principalmente quando se tem um quintal grande em casa, de chão arenoso com plantas mesmo que sejam estéreis. É muito divertido andar pelo terreno, cavoucar o chão com as mãos e encontrar aqueles restos de objetos quebrados, ou pequenos objetos esquecidos ali pelo tempo, enterrados afinal.

Lembro-me de minha emoção quando achei o caco de um prato de louça que tinha a estampa de uma catedral em seu fundo, e da alegria pelo caco ser justamente aquela fatia com tal emblema como se preservado. Encontrava pilhas antigas também, e me eram preciosas às pilhas do gato, muito comum era as amarelinhas. Tampinhas de refrigerante também, já enferrujadas pelos cantos em algumas peças encontradas. Que felicidade!

Perdia-me entre as plantas estéreis, as laranjeiras espinhentas que davam frutos amargos e imprestáveis, mas cujas folhas tinham grande serventia para infusões quando se tinha febre ou resfriados.

Isqueiros pertenciam ao rol de grandes achados de pequeno “arqueólogo” que eu era, mas muito comuns eram os isqueiros brancos encardidos pelo esquecimento nos escombros do quintal. Nem me perguntava por que se jogava tanta coisa fora assim pelo quintal. Eu via o quintal como um grande sítio arqueológico. Ele era aos fundos da minha casa de fachada quadrada e humilde. Naquele tempo ele se me parecia vasto, ainda como hoje, embora me pergunte hoje, se voltando lá confrontarei mesmo tal vastidão.

Um dos mais importantes achados para mim, nessa época de “arqueólogo”, seria encontrar uma miniatura de garrafão de vinho que tínhamos em não sei que época, mas ainda me lembro dela e como era divertido ver que a miniatura de garrafão de vinho se parecia tanto em sua pequenez com um garrafão de vinho verdadeiro, mesmo tendo aquele traçado de cortiça, a pequena rolhinha, tão minúscula, mas tão perfeita, e de como disputávamos para brincar com ela. Hoje, penso se não era um chaveiro tal miniatura. Pode ser, mas para mim naquela época era um brinquedo que desapareceu assim como desapareciam tantas coisas boas em nossas vidas, sem que percebamos e de súbito estamos nos erguendo de uma poltrona, como se acordado de um sono assustado, perguntando cadê, onde, como e quando.

A verdade é que nunca achei tal miniatura novamente, mas ela foi o grande impulso para que eu desvendasse aquele fundo de quintal, antes, tão tenebroso para mim. Encontrei tanto lixo perdido; lixo, digo hoje, quando “arqueólogo” eram tesouros, que guardava o quanto podia dentro da minha pasta escolar, pois ali, acreditava eu, os adultos não mexeriam. A minha busca pela miniatura de garrafão de vinho continuou durante a minha infância marcada pela brincadeira solitária ao fundo daquele quintal, ontem e hoje ainda tão marcadamente vasto em minha memoria. E até hoje quando me lembro, pergunto-me. Mas, não são apenas coisas que se vão em nossas vidas, pessoas somem também assim sem que tenhamos como saber o porquê.

Temos que aprender a nos reinventar como arqueólogos, pois estamos sempre buscando, fuçando os escombros e os entulhos da nossa alma e memoria com a pretensiosa intenção de saber do que foi feito de.