FICARÃO AS LEMBRANÇAS

Foram trinta dias intensos, lindos, carregados de gloriosas emoções, de sorrisos alegres e saudáveis fluindo em nossos rostos tão espontaneamente quanto o nascimento das flores nas ravinas, de quase ficarmos a dançar sobre o asfalto ante a descoberta de novas paisagens, da arquitetura antiga porém bela, de pessoas e culturas diferentes a nos mostrar que o mundo não se circunscreve apenas ao ínfimo espaço onde vivemos. Um mês inteiro, completo na Suécia garimpando ruas, praças, atitudes, cidades como Malmo, Lund e Estocolmo, tendo também o privilégio de, em pouco mais de vinte minutos de trem, abraçar a Dinamarca através de localidades como Tornby e da capital Copenhague, em todos esses lugares nos surpreendendo com o vigor de seu aspecto, de sua beleza, da educação de seu povo honesto, trabalhador, liberal, despreconceituoso, ativo, onde os idosos vivem tão bem ou melhor do que se jovens fossem, e não ficam em casa se lamentando porque envelheceram, pelo contrário, vão às compras, passeiam, se divertem, bebem vinho e comem em restaurantes e cafeterias.

Admirados, num único mês enveredamos por locais onde os turistas geralmente não vão, vivemos uma existência quase sueca porque vivenciamos seu cotidiano, fizemos feira nos supermercados, compramos nas lojas onde provavelmente somente o povo escandinavo gasta seu dinheiro, vimos os primeiros flocos de neve caindo desnorteados num amanhecer de Estocolmo, neve essa que nos salpicou, nos esbofeteou o rosto, enregelou dedos de pés e mãos, mas não nos impediu de andar pela capital da Suécia mesmo escorregando, sem cair, por suas artérias, pontes e ladeiras de Gamla Stan, de seu centro frenético onde até para satisfazer qualquer necessidade fisiológica é preciso pagar, seja nos banheiros públicos, ou nos das grandes lojas como Ahléns, H & M, Sephora, etc.

E no entanto, nosso primeiro contato com a neve ocorreu quando viajávamos de Malmo para Estocolmo num trem noturno, eu a dormitar quando Ana me acordou feliz, sorridente, para mostrar que as estações por onde passávamos estavam sendo cobertas pela brancura dela, isso não impedindo que passageiros habituados a viajar pelas estradas de ferro suecas esperassem, sob gelada temperatura, a chegada do trem para seguir seu destino. Eu despertei todo curioso, buscando também enxergar a chuvinha de neve respingando pela luz dos postes, atapetando paulatinamente o chão, grudando nos trilhos, nos bancos, nas árvores, nas plantinhas, nas flores, nas pessoas correndo com suas malas ao sair e para entrar no trem. E eu, também como ela, feliz com a visão da neve, ainda que através da vidraça do trem, debrucei-me sobre a imagem apresentada aos meus olhos agora despertos e cheios de atenção.

Testemunhamos o jeito livre de ser dos jovens suecos, a estranheza de muitos cabelos estilo moicano pintados de vermelho, verde e tantas outras cores, a liberdade que tem de ser felizes e escolher o próprio destino, de escolher sem opressões, sabendo que suas decisões pesarão sobre eles sempre, mas das quais podem mudar tanto quanto queiram. E os vimos sorridentes com os amigos trocando idéias, andando nas ciclovias com suas roupas charmosas tão comuns em países frios, falando ao celular às vezes aos gritos não de ira, mas de extravasamento, de uma satisfação incontida. Namoram livremente a quem escolhem, sem a opinião paterna ou materna, vivendo absoluta atividade sexual com responsabilidade, amando, sorrindo, em plena felicidade.

Não existe moto nas cidades escandinavas por onde andamos, nem mesmo nas capitais Estocolmo e Copenhague. A grandiosa maioria pedala sua bike pelas centenas de quilômetros de ciclovia existentes, poucos são os carros e muitos são os transportes coletivos de primeira linha, os povos nórdicos preferem qualidade de vida à poluição, vida saudável, por isso tem mais estacionamentos para bicicletas do que para automóveis, e estes pagam valores altíssimos para estacionar em qualquer lugar aonde vão, bem como ficam às suas expensas os pedágios constantes nas estradas que levam às outras cidades da região.

Não tem político ladrão na Escandinávia e seu salário é condizente com o que ganha o resto da população. Eles moram em pequenos apartamentos simples, lavam suas próprias roupas nas lavanderias coletivas dos condomínios, andam de bicicleta e não roubam o erário. O povo ama pagar altos impostos porque recebem de volta em serviços governamentais como educação, transporte coletivo da melhor qualidade, segurança, estradas e ruas perfeitas, sinalizadas, com ar puro e tranquilas.

Conhecer parte da Escandinávia foi para nós uma insuperável lição de cidadania, de sonho quase impossível realizado, de descobertas e vislumbres nunca dantes pensados, de encontrar realidades que certamente jamais veremos em nosso querido Brasil. Convivemos com temperaturas que alcançaram inimagináveis dezessete graus negativos, pisamos no lamaçal em que a neve se transforma quando derrete, se tornando escorregadia e perigosa, e há momentos em que congela no chão e forma pequenos e grandes blocos de gelo ainda mais perigosos. Nossas aconchegantes roupas apropriadas para o frio nos protegeram como puderam, mas houve instantes em que nem gorro, nem luvas, nem cachecol, nem quatro camisas térmicas e mais o casaco impediam que a gelidez atravessasse todas essas camadas de proteção e lambesse nosso corpo, apunhalando com punhais de gelo, afagando com línguas congeladas, perturbando, irritando, mesmo quando as duas únicas partes de nosso corpo de fora eram apenas os olhos.

Vivenciamos parte do inverno escandinavo, experiência inesquecível, única, que, embora não saibamos, decerto jamais tornaremos a compartilhar algum dia. Nesses trinta dias em Malmo, a terceira maior cidade da Suécia, nos hospedamos em um apartamento com todo conforto possível, tipo calefação, internet sem fio, dois quartos, um banheiro, cozinha toda equipada, próximo de tudo, principalmente restaurantes, lojas, centro, supermercados, estação de trem, escolas, transportes públicos, com direito a senha na entrada do prédio, chaves para abrir e fechar uma grossa e pesadíssima porta de aço, lavanderia coletiva com as melhores e mais modernas máquinas de lavar e secar, sistema maravilhoso e funcional de reciclagem de lixo e vista para uma rua e parte do bairro, de um lado, e do jardim privado do condomínio, de outro. Como já dito acima, repito, vivemos na Suécia como suecos, celebrando suas alegrias e chorando suas tristezas, indo aos shoppings, aos restaurantes, supermercados, padarias, farmácias e comércio. Foi um acontecimento inédito em nossa vida, algo realmente de indubitável delícia.

Uma única vez adoeci, como também Ana, de algo que imaginávamos ser gripe ou resfriado, pois afinal de contas vínhamos do Nordeste brasileiro, sob uma temperatura acima dos trinta e cinco graus, para os países nordicos, a Escandinávia, onde a temperatura no inverno, em determinadas localidades, chega aos vinte graus ou mais negativos. No decorrer dos dias, sofrendo essa vicissitude quase anunciada por essa razão de choque térmico, vimos a descobrir que nem era gripe nem resfriado, mas o ressecamento das vias respiratórias devido ao frio gelado e à calefação, problema resolvido com o uso de um produto para umedecer e limpar o nariz e a garganta, como também seguindo uma dieta rica e diversificada para nos fortificar nesse hostil ambiente de temperatura congelada. Graças a Deus ficamos bem imediatamente.

Levamos saudade, lembranças, fotos, crônicas escritas sobre esses dias aqui na Suécia, um diário e as descobertas em nossos corações. Não queremos dar adeus definitivo a essa região escandinávia porque ela é um convite ao regresso, um chamado à volta, por isso preferimos dizer mero até logo porque desejamos estar por aqui em outras estações do ano como a primavera e o verão, estes sim mais ou menos compatíveis com o nosso interminável verão nordestino. Foi tudo um sonho real, palpável, concreto, rico, alucinante, verdadeiro, algo para nunca mais esquecer.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 16/12/2012
Reeditado em 17/12/2012
Código do texto: T4039264
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