PREGÕES DO RECIFE
Considerando que são apenas 12 km as distâncias que separam o Km zero da capital, cujo marco está instalado no antigo cais do porto, exatamente no meio da Praça Rio Branco no bairro do Recife Antigo, e o início do Parque Camaragibe, no município do mesmo nome à Oeste e no sentido Norte/Sul, da ponte sobre o Rio Jordão, logo após o aeroporto, que liga (ou separa) o bairro do Ibura no Recife com o de Prazeres em Jaboatão dos Guararapes, até a ponte sobre o canal Derby/Tacaruna entre os bairros de Santo Amaro no Recife e Peixinhos em Olinda, junto a onde está instalada a Escola de Aprendizes Marinheiros, podemos afirmar que o Recife tem apenas doze quilômetros quadrados de área e que não tem mais para onde crescer.
A não ser que numa manobra política sejam anexadas à capital, a zona de praias de Jaboatão e toda a cidade de Olinda ou, num rasgo de absoluta bestialidade, sejam desviados ou canalizados os cinco rios que formam a planície aluvionária do Recife, e depois aterradas o que resta das áreas inundáveis (onde ainda resistem os fragmentos dos mangues empobrecidos pela monoespecificidade) ou então, como já vem ocorrendo, sejam os casarões mais que centenários substituídos pelos espigões, verdadeiras favelas verticais, onde a qualidade de vida é relegada à insignificância de coisa nenhuma, ou seja, o nada.
O Recife não tem parques, não tem áreas verdes, os rios (esgotos a céu aberto) não são aproveitados nem para linhas regulares de transporte público nem para o grande potencial turístico, que permanece reprimido, apesar do Recife ser uma planície aluvionária e como tal ter toda a malha líquida perfeitamente aproveitável como via de transporte e lazer.
Muito longe de ser daqueles saudosistas que acham que o bom eram os velhos tempos, os antigos procedimentos, eu acredito que a convivência entre o novo e o velho, do antigo com o moderno, das práticas tecnológicas e o modo artesanal de fazer as coisas podem, e devem conviver em harmonia, porque em última análise elas não se conflitam, ao contrário, se complementam e, mutuamente, se auxiliam.
Hoje podemos com a mesma facilidade ir a um shopping center e a uma feira livre que é uma das formas mais antigas de comercialização, principalmente, de produtos hortifrutigranjeiros.
Bem antes de haver as telas de computador, jogando a todo tempo, à nossa revelia, as propagandas de produtos supérfluos, havia os vendedores ambulantes.
Esses mascates (usei propositadamente o termo arcaico para caracterizar esses profissionais do comércio) faziam as vendas de porta em porta, nos bairros mais afastados, tendo em vista a dificuldade de locomoção das donas de casa, que geralmente tinham muitos filhos e ninguém com quem deixá-los, para vir às lojas do centro da cidade, onde os proprietários Salin, Chalita, Kalil (turcos) ou Samuel, Davi, Salomão (judeus) vendiam os tecidos e aviamentos para as confecções das roupas, que eram talhadas e costuradas, sob medidas, por modistas e alfaiates, amigos das famílias por muitas gerações e que sabiam fazer as roupas para todas as ocasiões.
Desde a fardinha da escola das crianças até vestidos de noiva ou ternos do dia a dia ou das grandes ocasiões.
Não havia no comércio as roupas prontas PP, P, M, G, XG, onde é o seu corpo que tem que se amoldar à roupa e não ela a você.
No bairro em que passei toda minha infância, adolescência e grande parte da juventude, eram muitos os vendedores com seus pregões inconfundíveis na nobre profissão de suprir as necessidades das famílias.
Ainda escuro, muito antes do despontar do sol, o vendedor de cuscuz apitava anunciando a sua passagem com o tabuleiro de alumínio polido e brilhante. O apito era de metal formado por dois tubos ligados que, ao serem soprados, emitiam duas notas harmônicas, num silvo longo, característico, inconfundível.
Logo após o entregador de pão, silenciosamente, entrava até as varandas das casas e colocava a encomenda dos pães nos sacos de pano, geralmente pendurados nos armadores de rede.
Era o pão francês, ou de sal, pesando 100g, com dois bicos bem definidos que era motivo de disputa entre a criançada, porque todo mundo queria comer o bico do pão recheado de manteiga, como se fosse casquinha de sorvete.
Ainda bem cedo, apesar do sol já se fazer presente, e quente, passava o vendedor do miúdo (vísceras de boi ou de porco, principalmente fígado, coração, miolo (cérebro), mocotó, língua, tripas e rins).
O homem dono do negócio ia a frente do carregador do tabuleiro, gritando:
- Míu, míu! (Eu nunca ouvi ele dizer miúdo, com todas as letras).
Eram raras as casas que possuíam geladeira, por isso o miudeiro passava todos os dias.
Logo em seguida vinha o verdureiro arrastando uma carroça ou com um pau atravessado nos ombros onde ficavam penduradas pelo menos três urupemas* de cada lado, contendo os produtos, como cebola, jerimum*, couve, couve flor, pimenta malagueta, nabo, rabanete, chuchu, quiabo, maxixe, batata inglesa, batata doce, limão, laranja, inhame, cará de São Tomé* ou cará nhambu* (diz-se também cará lambu, “saborosíssimo”) e principalmente as hortaliças, coentro, cebolinha, tomate, hortelã da folha miúda e as outras que seriam utilizadas como temperos no preparo dos alimentos.
O mel de engenho vinha numa lata, daquelas de querosene Jacaré*, limpa, brilhante e o vendedor servia as porções com uma concha bem rasa e passava gritando:
- Mé, nô, diiingem! (mel novo de engenho é a tradução para quem não entendeu o pregão).
O amolador de tesoura ou faca passava empurrando uma geringonça feita de madeira com roda de bicicleta, ligada a um pedal, por onde passava uma correia que acionava o rebolo de esmeril e ele anunciava a sua presença, usando um instrumento musical, semelhante à zamponha, feito de matéria plástica e que emitia o som firuí, firuí (da nota mais grave para a mais aguda, ida e volta).
O mascateiro empurrava a carrocinha que continha de um tudo. Qualquer coisa que se possa imaginar tinha dentro da carroça bem sortida, era realmente uma loja ambulante e ele anunciava a sua presença batendo dois pedaços de madeira que faziam o som semelhante ao das matracas das procissões da semana santa.
Fitas, linhas de costurar ou de bordar, em meadas ou carretéis, agulhas de mão ou de máquina, botões, rendas, bicos, viés, sinhaninha, elástico de diversas cores e larguras, colchetes, fecho-e-clair, óleo para máquina de costura e óleo de ovo para cabelo, brilhantina, sabonete, pasta e escova de dente, escova para cabelo, pente, grampo, tesourinha e cortador de unha, meia de renda, seda e algodão, tamancos, calçadeira e graxa para sapato, cinturão e tintura para cabelo.
- Dooooce japonêêêêês!
Gritava o vendedor de doces que em outros locais é conhecido como quebra-queixo, feito de goiaba, coco, batata, amendoim, castanha de caju, etc.
- Seriiiiingá, é mole e doce, é do amazona, tem vinte e três qualidade, vinte é mentira, três é verdaaaaade, seeeeeeringáááááá!!!
(Seringá é uma versão do doce japonês, vendido em tabletes com uma faixa colorida por cima, indicando o sabor, que podia ser de guaraná, goiaba, hortelã ou limão).
Raspa-raspa era vendido em copo de papel, contendo gelo ralado e calda de fruta por cima, sua presença era anunciada com uma buzina ou sino.
O algodão doce era feito na hora com o fogareiro de álcool, sob uma trapizonga onde era colocado o açúcar que derretido pelo calor, saía formando o fio doce, cheiroso, quente, delicioso. Sua presença era anunciada com sineta de bicicleta.
Na carrocinha de pipoca, uma buzina do tipo usado por Chacrinha, avisava a todos que aquela maravilha estava acabando de ser feita, quentinha com sal e manteiga.
- Bô!... Bô!... Bô!
Apregoava o vendedor de bolo carregando uma caixa de madeira, com tampo de vidro, repleta de bolo bacia (aquele bolo pequeno, do tamanho de empada e que vem pregado na forminha de papel), parece que a receita é a mesma do bolo inglês.
Pelo menos uma vez por semana passava a mulher de vender quartinhas de barro para resfriar a água de beber, que eram feitas por ela mesma.
Ainda me lembro de Samarica, baixinha, gordalhufa.
Além das quartinhas grandes, ela fazia umas pequenas para as crianças, porque ela dizia que menino gosta de beber na boca da quartinha.
- Mas não vá mijar na cama, viu?
(Essa era uma recomendação, verdadeiramente, inútil...)
No fim do dia, Seu Nonato, o vendedor de pão passava outra vez para receber o dinheiro do pão entregue pela manhã e vender (com pagamento à vista) o pão que seria consumido no jantar e anotar a encomenda para a entrega na próxima madrugada.
E o vendedor de cuscuz também passava outra vez no final do dia.
Batendo com um pedaço de ferro numa frigideira de metal, o soldador de panelas passava todo sábado.
A vendedora de milho e seus derivados tinha um tabuleiro armado na esquina da rua da igreja. Nem precisava apregoar, tinha freguesia fiel de janeiro a janeiro.
- Curimã e tainha! Tainha e curimãããããã!*
Gritava o homem de vender peixe com o tabuleiro na cabeça e passava, logo cedo, toda sexta-feira, que é dia em que não se pode comer carne vermelha, conforme os ritos da santa madre a igreja.
O mangaieiro era uma verdadeira loja de tudo, pendurada no ombro e ele se autoproclamava:
- Vassoureiro!... Vassoureiro! Vasculhador, espanador, colher de pau, esteira d’Angola, raspa coco e gréia (grelha).
Nos meses de março e abril, em plena safra de pitomba* passava o vendedor, com o balaio na cabeça repleto de cachos da fruta, amarados com embira de bananeira.
Sem dia nem hora certa passava o homem de vender rolete:
- Rolete de cana, de cana caiana, de cana de soca*, é dez um tostão, rolete patrão...
(Nessa época já não mais existia o tostão, mas para não perder a rima e porque todo mundo sabia que o cacho de rolete custava dez centavos de cruzeiro – Cr$0,10 o homem não se deu ao trabalho de alterar o pregão que fazia com voz forte e melodiosa).
Havia também os pregões silenciosos, como o aviso da casa de uma vizinha – ABRE-SE POINT A JOUR – ou as placas pregadas nas pilastras dos portões das residências:
- Dão-se aulas de piano em domicílio.
- Aulas de reforço de Português e Matemática.
- Curso completo de caligrafia vertical.
- Fulano de Tal – Contabilista.
- Dr. Zezito Motta – médico.
O progresso e a evolução (ou involução) calaram para sempre todos esses pregões, cuja existência teve grande importância naquela época, mas que hoje já não mais encontraria espaço num Recife que ninguém quer que volte a ser como era.
GLOSSÁRIO:
Cana Caiana = Saccharum officinarum
Cana de Soca = Primeiro corte. A rebrota chama-se ressoca.
Cará nhambu = Bomarea edulis
Cará de São Tomé = Dioscorea alata
Curimã = Mugil cephalus
Jerimum = Abóbora.
Peneiras (elementos vazados) redondas ou quadradas, confeccionadas com vime e palha cruzada.
Pitomba = Talisia esculenta
Querosene Jacaré = Querosene comercializado pela Cia Atlantic de Petróleo cuja lata com capacidade para 20 litros, tinha larga utilização depois que o querosene era consumido.
Tainha = Mugil brasilienses
Urupema = Peneira de palha com armação de vime, podendo ser redonda ou quadrada.
OBS: Tainha e Curimã são peixes do Gênero Mugil, razão pela qual eu acredito que era só uma Espécie, possivelmente a M. brasilienses, por ser a mais encontrada no Nordeste, que era vendida.