Alzheimer voluntário
Foi quando ela ainda representava alguma coisa. "Eu sei como matar uma lembrança em mim", dissera. Alzheimer voluntário. Ele, entretanto, desenvolvera a difícil técnica do desinteresse, da indiferença cozida pelo ódio em fogo lento. Não esquecer, mas acompanhar exaustivamente, até a abençoada insignificação. Assim, o antigo rosto tornara-se uma máscara de espantalho, e o outrora luminoso olhar um repelente magneto. Sua boca, que tanto o atraíra noutros tempos, era agora não mais que duas tiras de carne morta, um par de lagartas vermelhas estufadas, cheias de um suco venenoso e amargo. E as próprias palavras dela, seu empenho em parecer humana, apaixonada por outrem, revelavam-se a ele um péssimo trabalho de ventríloquo executado à distância. Tudo nela era falso, roubado, reunido e costurado, inclusive sua ilegítima inteligência.