Joselito e eu, férias e memórias.

Tudo parecia calmo naquela manhã nublada, acompanhada dos cantos diversificados de pássaros diversos. Lá embaixo as águas correntes do Rio Corrente jogavam no ar o barulho dos seus remansos e das suas correntezas sobre os pedregulhos. A rotina na fazenda Barra de Dona Rosa era muito calma e tranquila. Normalmente acordávamos e íamos para a beira do rio lavar os rostos e encher as latas de água, para depois tomar café e dar prosseguimento. Lembro-me bem dos pés de baraúna, jatobazeiros, o grande juazeiro do lado da casa, o pé de umbu mais ao fundo, e, antes deles, dois pés de laranja. Próximo ao curral, havia a casa do administrador da fazenda, o Natalino, marido de Ana, filha mais velha do casal Terto e dona Idalina. Ao fundo desta casa havia também um umbuzeiro. Entre a casa do curral e a do pé de juazeiro, havia um pé de xixá bem frondoso.

Próximo ao pé de baraúna havia uma árvore com grandes cipós grossos onde Joselito e eu, sentados sobre eles e, Detinha e Rica ficavam sentadas na relva. Joselito e eu sempre brincávamos de sermos Roberto e Erasmo, cantando a música ”Quero que vá tudo pro inferno” usando os cipós como baterias; também dávamos de Beatles cantando “Yesterday” mas só a palavra ,pois os restante era cantado em lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá. Bons tempos eram aqueles.

Quando não estávamos brincando na árvore, estávamos tomando banho no rio e pescando piabas com garrafas cheias de farinhas, enquanto Detinha e Rica lavavam as louças do almoço ou do café, ou roupas. Uma vez uma bola de sabão foi parar no fundo do rio com águas correntes e Detinha, corajosa como sempre, mergulhou e recuperou a bola de sabão. Eu nem hoje teria coragem de fazer isto e acho que ela também não.

Às vezes íamos para a roça de Padim Berto pegar umbu e araçá, pois os umbus de lá eram mais doces do que os nossos. Lembro que seu Terto sempre falava para nós , nunca defequem embaixo dos umbuzeiros para não estragar as frutas. Hoje cientificamente está provado que gases de fezes humanas estragam toda a qualidade das frutas, se deixadas embaixo das árvores frutíferas. Padim Berto , descendente de índio, pescava na lagoa com flechas e nunca deixava a gente acompanhar dizendo que nós atrapalharíamos a pesca, pois , para pescar com flechas, existe uma técnica e barulho por mais baixo que fosse, espantaria os peixes.

Joselito e eu apartávamos o gado leiteiro, montados no jumento maracujá e no pangaré branco, chamado de podói. Com as águas do rio se juntando com as águas da lagoa, nós obrigávamos os animais a nadarem conosco em seus dorsos. Era uma experiência e tanto. Certa vez, nos distraímos e os animais foram parar na ilhota que se formara entre o rio e a lagoa, já que as enchentes do Corrente juntava rio e lagoa em um só cenário. Para chegarmos até a ilhota, Joselito e eu tivemos que utilizar as cercas de arames farpados para chegar até os animais e apartar o gado, senão Natalino arrancaria o nosso coro. Foi uma tarefa árdua. Uma briga para quem seria o primeiro a arriscar e como sempre, Joselito era o mais corajoso. Não que eu não fosse corajoso. Se Lito era um pouco mais corajoso do que eu, eu era um pouco mais medroso do que ele.

A aventura foi fantástica. Nós , de pés descalços, usando os arames farpados como ponte para transpor as águas barrentas, vendo cobrinhas de água passando por debaixo de nós, tomando cuidado para não furar os pés até conseguirmos chegar na parte em terra firme sem águas e, prendendo os animais de montarias, o caminho de volta foi muito mais fácil e divertido. Parecíamos heróis. Joselito e João Jonnes (Idiana Jones) .

Voltando ao inicio desta crônica, tudo no início desta manhã realmente parecia calmo. Parecia calmo até ouvirmos um berro estridente e forte que sufocou os cantos dos pássaros e os barulhos do velho Rio Corrente. Levantamos assustados! Vem lá do curral, gritou alguém! E era. Corremos para lá e a cena que vimos era aterradora e assustadora. A vaca vermelhinha, a que dava mais leite, amarrada na árvore que servia de mourão ao centro do curral, e o Natalino batendo maldosamente na pobre vaca que urrava e turrava de dor sem poder fazer nada. Segundo o ignorante do Natalino, a vaca estava de safadeza prendendo o leite por isso tinha que tomar um surra.

Todos nós tínhamos medo do natalino, marido de Ana. Seu Terto, Joselito e eu assistimos o massacre sem poder fazer nada. Que isto não saia daqui, disse Natalino. Como nós gostaríamos de ser gente grande naquele dia! O Natalino com certeza não seria tão macho assim! Mas éramos dois negrinhos indefesos ! Anos mais tarde eu vi uma cena se repetir com mariano acougueiro, ao chicotear o seu cão que havia fugido de casa e ido para o açougue e Mariano queria que o cão voltasse para casa. O cão gritava assuatadoramente enquanto levava as chibatadas. De repente, uma mão segurou a mão de Mariano no ar e disse: Se continuares, mesmo em casa, serás preso! Era o Cícero soldado!Um soldado temido por todos mas que a partir daquele dia ganhou a minha admiração! Naquele mesmo momento pensei na vaquinha vermelha. Se houvesse um Cícero soldado na fazenda, certamente Natalino piaria fino. Mas não foi o que ocorreu.