Receita médica - ajude-me por favor!
Estava eu ali na escrivaninha, sentado em minha cadeira, com aquela folha de papel nas mãos, tentando interpretar aqueles indecifráveis e enigmáticos códigos escritos a caneta. Apelava tanto para meus conhecimentos linguísticos como também para minha técnica em leitura de textos incompreensíveis, prática desenvolvida ao longo da profissão. Afinal, aquilo não poderia ser tão difícil assim. Como professor, acostumei-me a ler frases, até textos inteiros, que mesmo o próprio aluno já não sabia mais o que havia escrito, ou pensado ter escrito.
Ora aproximava o papel dos olhos, ora o distanciava um pouco mais. Fechava um pouco os olhos, depois os abriam devagar, em uma vã tentativa de apreender o que estava escrito nas linhas misteriosas. O prazer em desvendar o desconhecido é um sentimento inerente ao ser humano. Porém, compreender aqueles sinais não era questão de prazer, ou teimosia, tratava-se de uma questão de sobrevivência, um risco de vida, e o pior, a minha vida.
“A humildade é a única base sólida de todas as virtudes”, lembrei-me de Confúcio. Usei a minha humildade, que há muito estava guardada. Envergonhado pelo insucesso na leitura, pedi ajuda, liguei em uma farmácia e expliquei ao atendente meu problema, disse que estava com uma receita médica em mãos, não compreendia o que o médico quisera escrever, precisava dos remédios, e não poderia ir até lá. A voz respondeu: “Então, fale quais são os remédios e os entregaremos neste instante”. Falei partes dos rabiscos que eu já havia decifrado, juntando a outros que ainda não. A resposta veio efusiva: “Certo, o que você está dizendo, ou tentando dizer, pode ser isso, pode ser aquilo, como também aquilo outro. O melhor é trazer a receita aqui”.
Enquanto dirigia até a farmácia, pensava em o que leva um sujeito a escrever daquele jeito. Lembrei-me de que certa vez perguntei a um médico porque a escrita médica, em sua maioria, era ilegível. Ele me respondeu que durante o tempo da faculdade recebe-se um volume muito grande de informações e é preciso estar anotando o tempo todo, privilegiando a rapidez e não a estética do que se escreve. Eu disse a ele que tudo bem, que ficasse tranquilo, eu não estava com pressa, que ele poderia ir anotando devagar, sem nervosismo. Ele sorriu, discretamente, passou rapidamente a caneta pela receita, carimbou, e me dispensou.
Saber que o autor daquelas linhas ilegíveis era um sujeito que passou grande parte da vida estudando deixava-me irritado. Além de dificultar a vida dos outros, ele estava transgredindo a lei. Segundo o código de ética médica, quanto ao cuidado com a letra legível na receita médica, a escrita deve ser de modo que o paciente a entenda e que o farmacêutico saiba interpretar a forma de administração da medicação prescrita. No mais, há décadas existe computador e impressora.
Por fim, cheguei à farmácia, frustrado por não conseguir algo que eu sabia fazer tão bem. O farmacêutico olhou a receita, saiu e mostrou a outro atendente. Voltou e disse a mim: “como não podemos tentar adivinhar o que está escrito, sob pena de que seja cometido um erro, o melhor é o senhor voltar ao médico para que haja o esclarecimento sobre qual o medicamento e qual a dosagem indicada”. Apesar do contra tempo, a resposta agradou-me, afinal, o problema não era comigo.
MARTINS, Paulo. Jornal do Tocantins (14/12/12), Diário da Manhã (17/11/12) e Gazeta New (17/11/12).