Visita a Um Doente Terminal

Não é muito comum receber a notícia de que um conhecido nosso está internado num hospital em estado terminal. E mesmo que esse conhecido seja apenas um ex-colega de serviço com o qual não se mantinha um laço mais estreito, o choque emocional, diante dela, é inevitável.

Foi o que aconteceu quando um colega comum me ligou outro dia, anunciando o fato. E o quadro pintado sobre o doente era assustador. Com um câncer nos ossos avançado, praticamente jazia imobilizado na cama, com partes inferiores sem mobilidade, um olho perdido, complicações para sedação e alívio da dor devido à dificuldade de encontrar artérias, tratamentos de quimioterapia e radioterapia sem resultados. Eu soubera por outras fontes que esse colega descobrira esse câncer na época em que saíra da empresa, uns dois anos antes e iniciara um tratamento para uma possível cura. Mas, pelo que tudo indicava, a doença avançara a um estado irreversível.

Lembrei-me dele como um profissional competente na sua área, com cargo de supervisor na empresa, talvez um tanto arrogante por sua posição. Excessivamente obeso, percebia-se que não cuidava da alimentação. Mas era extrovertido e dava-se bem com a maior parte das pessoas. Devido à sua arrogância, eu limitava-me mais a uma relação profissional com ele, evitando uma aproximação maior. Depois que foi transferido para outra cidade, porém, mantivemos uma relação mais ou menos cordial, através de e-mail’s.

A informação que o colega passava era de que o doente achava-se muito carente e apreciaria toda e qualquer visita. Anotei o endereço do quarto do hospital, mas disse ao colega que não tinha certeza de que faria a visita, dada a sua natureza constrangedora. Ele entendeu e deixou-me à vontade nessa decisão.

No dia seguinte, ainda em dúvida, comentei o fato com um amigo comum que me visitava e sugeri que fôssemos juntos ao hospital. Talvez juntos pudéssemos enfrentar melhor a situação. Confabulando sobre o que se falaria a uma pessoa numa situação dessas, o amigo, diante das minhas informações, concluiu que, para o doente, apenas nossa presença já seria um grande conforto. Não precisávamos falar muita coisa. Havia um horário restrito para visitas, das 12:00h às 13:30h. Aprontei-me e, depois de almoçarmos na casa de uma irmã minha, dirigimo-nos ao hospital.

Lá chegando, tivemos que esperar um pouco, pois eram permitidas somente duas visitas de cada vez e já havia dois colegas nossos no quarto. Um deles desceu e eu subi no seu lugar.

A colega que ficara conversava com ele. O quarto era compartilhado e havia outro doente do lado recebendo visitas. Cumprimentei o filho que acompanhava o doente, o doente e a visita que ficara, uma ex-colega de trabalho extrovertida, que há muito tempo não via e com quem troquei rápidas informações. Ela conseguia animar o doente. Este não parecia estar deprimido. Conversava normalmente. Gordo como na época em que trabalhava na empresa, esparramava-se na cama apenas com um lençol cobrindo parcialmente o corpo, devido ao calor. Careca devido à quimioterapia e o olho direito tapado por um curativo. A colega disse alguma coisa a respeito de tudo que acontecer ter uma razão de ser, de nada acontecer por acaso. Pensei que para consolar as pessoas, falamos muitas bobagens. Mas se elas aliviam a dor, acho que são válidas. Como as histórias de ficção que nos arrancam lágrimas e nos aliviam porque nos identificamos com elas. Nesse sentido, falar em Deus nesses momentos difíceis, mesmo que não se acredite nele, talvez seja importante para a vítima, se lhe traz algum conforto, principalmente se ela é crente. Numa situação como aquela, não há a mínima possibilidade de uma discussão filosófica sobre as crenças humanas. Precisamos mergulhar nas fantasias do doente para consolá-lo, como fazemos com as crianças quando falamos de Papai Noel ou de bicho-papão. Numa situação dessas, qual o sentido em contestar um Deus supostamente misericordioso e cheio de bondade, que permite que um ser humano se proste e sofra daquela forma tão indigna e humilhante? De que isso adiantaria, quando apenas aumentaria ainda mais sua agonia? Talvez ajudasse dizer que os desígnios de Deus são misteriosos. Mas suspeito que essa é apenas uma saída estratégica de quem não tem argumentos, uma saída fácil de quem se ancora em fantasias sem sentido.

A colega despediu-se de nós, com um alegre sorriso para o doente. Fiquei a sós com ele. A partir daí, era eu me confrontando com a morte. Tentei ser calmo, perguntei-lhe como é que a doença surgira. Explicou-me também com calma, da mesma forma como conversávamos na empresa, e isso me tranqüilizou. Disse-me que era bom dormir, pois se esquecia das dores, mas na última noite fora difícil devido ao companheiro de quarto, que, por algum motivo, causara uma agitação durante toda a noite. Ele conseguira dormir apenas por uma hora, e isso ainda por causa de um calmante. As dores estavam nas costas, por causa das escaras, feridas que surgem devido à imobilidade constante. Sugeri que se movimentasse na cama, trocasse de posição. Disse-me ser isso impossível, porque seu braço esquerdo quebrara-se sozinho. Provavelmente, imaginei, por causa da fragilidade dos ossos. Sugeri que usasse um colchão ortopédico que se usa nessas situações. Disse-me que, por baixo dele, já havia um.

Tentei animá-lo falando sobre os avanços da medicina, que não se podia perder a esperança. Disse-me que desconfiava dos médicos, que não se empenhavam o suficiente. Suas respostas aos meus argumentos eram desconcertantes, não me ajudavam muito. Era uma característica sua, da qual me lembrava de quando éramos colegas de empresa. Disse-lhe então que, se chegara a sua hora, que a aceitasse. Que a morte, cedo ou tarde, é uma experiência pela qual todos nós temos que passar. Que rezasse bastante (minha intenção era não falar nada que lembrasse religião, mas essa observação escapuliu, inevitavelmente).

Nisso chegou o amigo, que substituíra a colega que se fora, o que me deu uma trégua naquela conversa um tanto tensa, onde eu começava a dizer coisas que não queria. Falamos os três sobre amenidades, rimos um pouco.

Daí a pouco um funcionário chegou avisando que o horário de visitas terminara e que deveríamos nos retirar. Na verdade, devo dizer que aquele anúncio trouxe-me um certo alívio, como que me libertando de uma obrigação difícil. Instintivamente, toquei-lhe no seu ombro com minha mão direita, desejando-lhe melhoras (estranhamente, mais tarde, li, em algum lugar, que os toques são importantes para o doente, em situações desse tipo). Disse-me que na outra semana iria iniciar um novo tratamento, o qual poderia reverter a situação. Mas que estava pronto a aceitar o seu destino, qualquer que fosse ele. Disse-lhe que estava à sua disposição, que me telefonasse se precisasse de algo. Agradeceu-me.

Desejei-lhe boa sorte. Disse alguma coisa a seu filho, heroicamente ali plantado ao lado do pai. Despedi-me.

Enquanto voltávamos para casa, comentei com o amigo o quanto nós, independentes, éramos sortudos. Tínhamos o poder da ação, da escolha, do livre-arbítrio. Isso tudo porque éramos saudáveis e, no entanto, pouca importância damos a isso no dia a dia, enquanto não nos confrontamos com situações como a daquele infeliz colega. Comentei então que a maior riqueza do homem não está na quantidade de suas posses materiais, mas na sua saúde. Parece um clichê um tanto óbvio, mas quantas pessoas realmente o seguem? Basta que se observe o comportamento dos fumantes, mesmo com todas as advertências, envenenando paulatinamente seus pulmões, que um dia cobrarão com juros fatais o tratamento infame. Basta ver como a obesidade mórbida torna-se uma epidemia nos Estados Unidos, por conta da alimentação supercalórica de suas lanchonetes "fast-food". Basta ver os jovens entregando-se às drogas ilícitas, envenenando seus corpos e mentes. Basta ver como a bebida, incentivada socialmente, arruína os fígados ou aumenta as estatísticas de morte nas estradas. É mais importante adquirir bens materiais, ficar rico, do que cuidar de nossa saúde, física ou mental. Para aquele colega impotente e imobilizado numa cama, com dores constantes, do que lhe adiantaria ter uma conta polpuda no banco? Ao invés de cuidarmos da conquista de bens materiais, deveríamos cuidar antes do nosso corpo, esmerarmo-nos em proporcionar-lhe a melhor saúde possível. E isso, ao contrário do que se pensa, não custa caro. Basta evitarmos certos hábitos nocivos, praticarmos exercícios moderados (uma caminhada regular é de graça), escolhermos alimentos saudáveis, visitarmos nossos médicos regularmente. Não é preciso riqueza para isso, manter-se saudável é um estado que está à disposição de qualquer um.

Falando nisso, lembrei-me de que está na hora de marcar a consulta anual com meu urologista. Aquele famigerado toque retal não está agora me parecendo tão terrível assim.

"Postscriptum": Logo após a visita, devido à sua carga emocional, pensei em escrever esta crônica e comecei a elaborá-la, incubando-a num canto do computador. Entre correções, acréscimos e cortes, no intuito de dar a maior veracidade possível ao que vivenciara com a visita, passou-se mais ou menos um mês. Na visita eu notara no paciente uma ponta de esperança de recuperação e isso me gerou uma certa dúvida sobre o seu verdadeiro estado. Depois de certa relutância, devido a essa dúvida, enfim publiquei a crônica aqui no Recanto das Letras no dia 06/03/2007. Dois dias depois, no dia 08/03/2007, recebi a notícia da sua morte.

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 06/03/2007
Reeditado em 19/03/2007
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