FOGO E GELO

Para um nordestino habituado desde sempre a conviver com temperaturas elevadíssimas e causticantes que fervem o chão em brasa e queimam a pele dos habitantes da região, podendo causar câncer de pele com o poder destruidor de seus raios ultravioleta, a espantosa visão de um rio congelado no período do inverno europeu é algo indubitavelmente fenomenal, uma realidade quase inacreditável, estranha e até mesmo um tanto inimaginável, que foge totalmente aos seus padrões e conceitos. Aquele enorme bloco de gelo que antes fora caudaloso rio passando sereno e manso pela cidade, sob a força titânica do frio invernal, passara do estado líquido para o sólido, e eu me via a poucos metros desse espetáculo como outrora assistia à terra nordestina fervendo o barro e o asfalto debaixo dum sol assemelhado a incomensurável fogueira em seu espaço. Nem eu meus mais criativos sonhos eu conseguiria me enquadrar numa cena em que um rio poderia ficar completamente congelado em toda a sua extensão

Agora, ali, nessa tarde de 14/12/2012, em plena sexta-feira, caminhando sobre a ponte no centro da cidade de Malmo, aqui na Suécia, eu olhava o rio que já não era mais rio, apenas uma rocha de gelo cortante e ameaçador, a lâmina d'agua antes percorrendo lugar como uma artéria levando e trazendo vida, mimetizara-se de forma total, de água límpida se tornando gelo puro, seco, áspero, duro e firme como as estradas asfaltadas, e então eu não conseguia conter minha emoção, as lembranças do sol tórrido tropeçavam em minha mente com a nova realidade daquela bloco de gelo que antes era um rio e tudo se misturava de emoção em emoção. Olhei o relógio, atarantado, não confuso, mas em lento controle de minha própria alegria contagiante e o pasmo que me dominavam, e veio-me à lembrança que no fuso horário a diferença entre o Brasil e a Suécia é de quatro horas a mais e fiquei imaginando que, a essa altura, às treze horas em Natal, certamente a temperatura estaria nas alturas, provavelmente lá pelos trinta e sete graus de fogueira, enquanto aqui na Suécia tremíamos de frio ante os cinco graus negativos, o vento gelado batendo no rosto, a água abaixo da ponte tão grossa como uma tonelada de gelo zombando dos meus olhos.

Toda essa linda, extraordinária e impressionante contradição se sobrepunha em dar voltas em minha mente atônita, torcia minha compreensão, causava estupor, fugia completamente de meu entendimento humano. No meu Nordeste brasileiro, onde nasci em meio ao escaldar do sol, terra triste e abandonada pelos governantes em que vivi toda a minha infância e adolescência, terra de petróleo em abundância, sal conhecido pelo mundo e infinitos produtos tropicais somente encontrados em suas esquecidas plagas, pois bem, lá nesse mesmo específico momento o chão se vê em brasa, e aqui na Suécia, esse país rico, cuja qualidade de vida ultrapassa a de qualquer outra nação, país onde me encontro há quase um mês, a passeio, conhecendo o cair da neve e vendo um povo feliz sendo ainda mais feliz a cada dia, o chão em gelo, o rio da cidade de Malmo congelado. Dá, ao mesmo tempo, em meu coração, um súbito misto de melancolia e alegria, dor e prazer, sonho e realidade, vida e paz, perto e longe, um filme de longa metragem com as grandes diferenças descobertas pelo mundo de meu Deus.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 14/12/2012
Código do texto: T4035893
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