A REVOLTA DO CATIVO

Por: JOSAFÁ BONFIM

Faltava pouco mais de uma década para o fim do regime escravocrata no país, talvez, lá pela década de 1870. A Fazenda Boa Esperança, na margem esquerda do rio Mearim, a quatro quilômetros da vila de São Luis Gonzaga do Alto Mearim, outrora vila do Machado, era então, propriedade de agricultores portugueses, que a ocupava desde antes da fundação da vila, muito antes mesmo de pertencer à família Raposo, também de origem portuguesa, quando serviu de cenário para um episódio fatídico que marcou a sociedade provinciana da época.

O País respirava sob o jugo de um regime social que envergonhou a Nação por mais de dois séculos. Vivia-se sob o regime escravocrata que tanto infelicitou a vida de uma classe oprimida, desde sua origem nos rincões da sinistra África Negra.

De gênio forte, temperamental e truculento, o então proprietário da Fazenda Boa Esperança, senhor de vastas terras e grande plantel de escravos, não amenizava em suas ações enérgicas, ainda mais, quando referia-se ao trato com a escravaria que integrava aquele vasto patrimônio.

O capataz, por seu turno, resoluto, não divergia do comando, tanto pelas instruções recebidas, quanto pela índole ruim que carregava, recebia e executava fielmente as tarefas que lhes eram delegadas, na labuta do dia-a-dia da fazenda .

Um jovem escravo, de 16 anos de idade, cria única de uma negra que não mais procriava, comprada na praça da vila de Caxias das Aldeias Altas, ativo nos afazeres domésticos, más insolente e recalcitrante na labuta do campo, a quem o patrão não nutria apego, era a "espinha de garganta" do feitor. Suas peripécias se causavam ira na classe senhorial, arrancava admiração dentre seus pares no reduto da senzala, pelas astúcias que era capaz de promover.

O negrinho era usado nos diversos serviços da fazenda, por mais árduos, sem receber do comando qualquer tratamento digno que fosse. A condição de ser cria da própria fazenda, onde cresceu no recinto da casa grande, não o distinguia dos demais, que sobre o açoite viam as costas minarem ao sol, no duro tranco da lavoura.

Certo dia ao retornar das comemorações de um festejo realizado na vila, o patrão determina ao negrinho, que proceda a lavagem do animal, no porto beira-rio. No que foi feito e repetido, uma, duas, três, e incontáveis vezes, para o desplante do dono do cavalo e o infortúnio da “peça negra”, como eram tratados os cativos.

Aborrecido e exaltado, por achar que o seu cavalo de estimação não estava tendo o tratamento devido por parte de seu escravo, o Portugues, (como tratavam-no), passa por diversas vezes, sobre o dorso do animal sua camisa branca e limpa, tirada do corpo ali mesmo, para detectar até o ultimo resquício de sujeira. Talvez tocado pelos tragos a mais, tomados na festa, não parou com a implicância, enquanto não se deu por convencido que seu alazão estava de verdade limpo, reluzente.

Mas, as agruras não se encerraram por ai. Achando pouco o despautério, o patrão, ainda indignado, ordena ao feitor levar ao tronco o negro insolente, aplicando-lhe o corretivo costumeiro para insubordinação julgada grave, como aquela. Diligente, apressou-se o feitor, e instantes depois estava o infeliz negrinho a curar suas costas pela única afabilidade encontrada em sua resignada vida: as mãos de sua impotente mãe.

As marcas ficaram no corpo, assim como o rancor na alma. Um incessante desejo de vingança passa a ser mausinado no instinto açodado da resoluta “ peça de ébano”.

No convívio diário do cativeiro, o relacionamento entre a classe dominadora e cativos era de desconfiança e conflituosa. Daí, ser comum a revolta de escravos contra seus senhores, por causa das condições subumanas que lhes eram impostas e os maus tratos advindos disto. Vez e outra corriam notícias na província, de insubordinação de negros contra seus opressores, que redundavam em carnificinio. Rebelendo-se, fugindo para quilombos, ou desertando. Mas, isso, lá pras bandas do Pindaré, Viana, Turiassu etc.. onde constatava-se a existência de quilombos. No âmbito do território gonzaguense, isso não tinha registro. Consumava-se apenas pequenos atritos, ou conflitos de menores proporções e as vezes fugas, estas, sim, eram bem comuns.

* * *

Enquanto garças brancas pontilham o céu, nuvens de rolinhas cobrem a relva das encostas. As sardinhas que gazeiam na praia, se esquivam ante às investidas dos mergulhões e martins- pescadores. A mata antes espessa, agora, cede lugar à vegetação rasteira. Sobre o solo ainda escurecido das queimadas, vê-se legião de almas negras contorcendo no roçado, na batuta da ferragem, sob o açoite do ferino chicote. Era irremediavelmente, a época do plantio agrícola, nos verdes campos da Boa Esperança.

...E lá estava o moleque misturado entre os irmãos de igual sorte, curvado no eito do plantio de arroz no roçado da fazenda. O senhor, seu capataz, e o feitor, estavam todos no local, supervisionando os trabalhos, vendo a negraria se debruçar no semeio.

Numa inspeção aos serviços o senhor se afasta dos auxiliares para melhor averiguar um restoio de covas abertas sem sementes. Foi a chance que seu desafeto teve para em continente botar o plano fatal em execução.

Munido de um chacho, ferramenta utilizada em plantio, o negrinho se aproxima sorrateiro como uma serpente e rápido como um raio, investe sobre o desapercebido senhor, atingindo-o no meio das costas, com um arremesso certeiro e fulminante do instrumento de trabalho. Estava concretizado o plano que ruminava há longo tempo.

Em ato contínuo o capataz estarrecido, brada forte:

- Negro infame, vai pagar pelo feito. Para ai..., para...

O agressor não atende a ordem..., e desarmado tenta fugir. Não houve tempo. O capataz com a garrucha em punho, atira pra valer e acerta o negrinho em cheio, também nas costas, que rodopia e estende-se no chão, sem vida.

Em instantes dois corpos jazem no local, fruto da estupidez que reinava na relação conflituosa entre senhor e cativo, resquício de numa sociedade escravocrata e discriminadora.

O clamor tomou conta da família senhorial, que por ser figura destacada na região, o falecido senhor teve no velório a visita de várias pessoas ilustres, sobretudo, vindas das vilas das Pedreiras e da Fazenda Bacabal dos Abreus, trazendo as condolências e confortando aos entes enlutados. Teve como local do sepúlcro, o cemitério de São Francisco Xavier na vila de São Luís Gonzaga do Alto Mearim, com todas as honras, que o status social lhe conferia.

Enquanto o outro óbito teve nada mais que o tratamento que era dispensado aos da sua classe em situações do gênero. Como um pobre diabo, fora enterrado em sepultura rasa, sem qualquer destaque, sob o soluço profundo da desolada mãe e silenciosos ais da negraria consternada, em uma beira de caminho qualquer, desses que se acham encobertos, entre ramas e pindobas, nas pastagens que hoje cobrem o solo da histórica Boa Esperança.

Josafá Bonfim – São Luís/MA, 25 de março de 2011

josafá bonfim
Enviado por josafá bonfim em 14/12/2012
Reeditado em 31/01/2013
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