Amor em tempos de dor

Ela está reclinada na cama, lendo quando ele entra. Sorri alegre, pois seu dia muda quando ele entra.

Ele senta-se à beira da cama e puxa as mãos dela. Beija cada uma e falam de seus dias.

Ele se pergunta do que é feita aquela criatura, pra ter sempre aquele sorriso que desarmaria uma guerra, enquanto se irrita por picuinhas do dia a dia.

Percebe que ela ainda está despenteada e a manta sobre suas pernas está como ele a deixou na noite anterior. Volta os olhos pra o rosto dela, agora magro, mas o brilho dos olhos desmente a tristeza.

As flores são um toque de cor aquele quarto cinza, e alegram o ambiente, sem falar dos desenhos feitos pelos filhos que estão colados com fita adesiva.

Ela sempre gostou de cinza e grafite e conseguiu convencê-lo a pintar o quarto deles assim. Ele estranhou a cor fria até ver que as flores sempre presentes naquele vaso de cristal âmbar, presente de casamento, eram um elemento sempre presente. Passou a gostar do cinza. Agora que ela se tornara prisioneira desse quarto, dessa cama, com a doença avançando sem pedir licença, ele o detestava. E percebeu nessa manhã que a vida que emanava dela, e coloria tudo, embora tal ideia fosse incongruente com a situação.

Como tudo isso foi acontecer? como aceitar que ela esteja ali? Ele não se acostumara e, ela após sofrer e viver o luto, resolvera se reconciliar com aquilo que fazia parte de suas vidas. Ela era ela, a doença era só um detalhe. Ela resolvera que viveria da melhor forma nesse tempo que lhe restara, afinal, passado o choque e o luto, ela emergira mais forte e bela. Não uma borboleta saindo da larva, mas um pedaço de arco-íris, saindo da borboleta.

Ele fica encantado enquanto ela fala da leitura que está fazendo. Seus braços inertes repousam sobre a colcha, pois o pouco tempo que ela usa-os pra sustentar o livro, trazem cansaço. Ela tem dificuldade em se pentear por causa disso... ela que era tão cuidadosa com sua aparência.

Ele passou a fazer isso por ela, já que o mais dependia de médicos, remédios e a disposição dela em aceitar aquela realidade.

Ele pega a escova e começa a pentear-lhe os cabelos, antes longos, agora curtos por ser mais prático. Penteia amorosamente e ela sente cada escovada como uma declaração de amor. Relaxa pra curtir aquele momento, tão precioso nessa nova intimidade que eles desenvolveram por causa da doença. Começa a cantar, sempre canta quando ele penteia os cabelos dela; um hábito dos tempos de namoro, em que eles cantavam juntos nessa hora. Ele não canta mais, mas ela canta até pra ajudá-lo a aceitar tudo isso.

Ele termina de penteá-la e passa pra a próxima tarefa. As pernas dela tão bonitas agora são só isso, já que não conseguem levá-la a lugar algum. Passa a massageá-las e ela 'ajuda', pondo-lhe o óleo nas mãos. Ele esfrega e massageia vigorosamente seus pés, na tentativa de fazê-los reagir. Ela sente a pressão desesperada dele, como a necessidade de vê-la bem. Sabe que ele não se conforma. Decide intervir, pedindo-lhe pra ir pra cadeira. Ela a leva pra o terraço e ela pede-lhe que traga as flores.

É um trabalho que ela se obriga a fazer, pra movimentar as mãos. É também um prazer, já que sempre gostou de flores, mas agora qualquer gesto é um esforço e só a beleza e perfume delas, a anima.

Ele entende que ela o faz também por ele, pra evitar seu desânimo. Cada um sabe do sonho e dor do outro. São uma equipe entrosada.

Quando os buquês estão prontos, ela se anima pela cor e beleza, mas está cansada.

Queda-se olhando o jardim imenso à sua frente e lembra do tempo em que corria ali com o cachorro. Afasta o pensamento, não tem tempo pra tristeza. Tem que viver. Precisa viver.