O FIM DO MUNDO

"O olhar para trás, fazer as contas, concluir,

procurar consolo no que foi,

por meio de recordações,

prediz uma conclusão da vida sobre a terra

e condena tudo o que vive

a viver o último ato."

("Considerações Extemporâneas", Nietzsche -

pág. 66 - Coleção Os Pensadores Editora

Abril Cultural).

Quando era garoto, costumava passar minhas férias em Machado de Mello, uma estação da estrada de ferro noroeste do Brasil, lugarejo minúsculo, "cidade morta" de Monteiro Lobato, que acho que nem mais existe.

Um dos meus tios tinha ali uma propriedade rural na qual plantava café e colhia prejuízo.

Havia coisa boa por lá.

Um belo riacho para nadar e pescar lambaris, lampião a gás, frutas no pomar, serelepes caxinguelê, preias, codornas, leite no curral, pela manhã, ainda quente das tetas das vacas, espumoso, cremoso, como nunca mais bebi, uma casa com varanda em éle que depois copiei o desenho em planta baixa quando construí minha própria casa, serena, fresca, que ao entardecer era invadida pelo aroma do jantar preparado no fogão a lenha e depois, a noite, substituído pelo forte perfume do arbusto "dama-da-noite", e nessa varanda meu tio, de pijama e chinelo de couro, estirava-se numa espreguiça para contar "causos" antigos, assombrados e assombrosos, a todos os vizinhos que compareciam para um dedo de prosa, cerimônia de paz e da boa noite, tal e qual Alexandre, personagem de Graciliano Ramos, com a diferença de que a minha tia não chamava-se Cesária, mas como ela comportava-se, confirmando todas as mentiras.

Um mundo antigo, que já morreu.

O mundo acaba-se todos os dias, quando a gente se deita para dormir.

Aprendi isso com esse tio e minha tia, quando lhes pedia à benção, beijando-lhes as mãos e que declamavam comigo "com Deus eu me deito, com Deus eu me levanto, com meu Anjo da Guarda e o Espirito Santo".

Pela manhã o mundo nascia de novo, como uma página em branco, que durante o dia eu preencheria com as maravilhas do campo e com as estrepolias de moleque.

Mas agora, dizem todos, o mundo vai acabar de vez.

Para sempre.

Tem até data marcada: 21 de dezembro.

Ou seja, um dia após eu ter feito quase todos os pagamentos que me são exigidos mensalmente.

Pontual que sou com a quitação dos meus compromissos, melhor seria que o mundo acabasse no dia 19.

Sou mesmo um azarado.

Esse meu falecido tio tinha um hábito.

Bastava o tempo ficar seco, o feijão e o arroz, para subsistência, cultivados entre as ruas dos pés de café começar a sofrer, para ele levantar-se da espreguiçadeira, achegar-se a divisa da varanda com o quintal, levar a mão na testa como quem enxerga longe e decretar com uma voz assustadora, (pelo menos para mim, que morria de respeito por ele):

"Nunca mais vai chover no mundo."

Todos ouviam com atenção e calavam-se.

No silêncio que se seguia, pensava comigo, vem coisa feia por ai...

E bastava chover dois dias seguidos, para ele vaticinar:

"Nunca mais vai parar de chover".

Para quem vivia da roça, naquele mundo antigo, chuva e seca eram coisas muito importantes.

Mais importantes que Getúlio Vargas, bem mais que General Castelo Branco e todos os outros que o procederam.

Também esses medos já morreram.

E todos os medos já morreram em mim.

Hoje não tenho medo do fim do mundo.

Então, dia 21 de dezembro, vou acordar sereno.

Ou então não acordar.

Ou dizer como o outro: "quando acordei, vi que estava morto!".

Mas, se novamente eu ver o brilho do sol, para celebrar a vida que se renova e se renovará sempre, vou me comportar como galã de filme antigo, abrir e beber um champanhe, ao modo do mundo que já acabou sem deixar registro nos jornais.

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Fotos da estação ferroviária (abandonada) de Machado de Mello, podem ser vistas no site: www.estacoesferroviarias.com.br/m/macmello.htm

Naquela estação, hoje solitária no pasto de ovelhas, desembarquei várias vezes ao ano para celebrar a alegria.

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Obrigado pela leitura.

dezembro/ 2012

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Sajob
Enviado por Sajob em 14/12/2012
Reeditado em 14/12/2012
Código do texto: T4035372
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