A burra e o absurdo
A BURRA E O ABSURDO
Por: Josafá Bonfim
A sombra vespertina cobria um terço do largo da antiga e poeirenta praça da Bandeira. Já não se via o feixe de animais encabrestados nos postes de madeira, da iluminação publica. Era os vestígios de meio de tarde daquele sábado de inicio de janeiro. O comércio, que fechara para o almoço, de volta a movimentação normal, aos poucos se esvazia, deixado pela clientela interiorana, que cedo retornava às suas origens, pelos caminhos enlameados, muitos longínquos e de difícil acesso.
Ainda não existia a massificação de transportes motorizados como motocicletas e automóveis. Constatavam-se, apenas, veículos pesados. Mesmo assim, raríssimos. Privilégio de poucos aquinhoados.
Os animais de tropa sofriam com a sobrecarga do peso dos gêneros agrícolas, trazidos para os cerealistas da cidade. E no retorno, em vez de aliviar o excesso, acentuava-se, pois agora com fome e sede levavam nas costas os fardos de mercadorias e produtos manufaturados a serem comercializados nas localidades de origem.
Após checar as cargas, o tropeiro Inácio aperta as últimas cintas das cangalhas antes de deixar a praça do centro comercial. Tinha que apressar o passo porque a caminhada até seu povoado era longa e cansativa. E aquela tarde, por ser invernosa, prometia aguaceiro em suas ultimas horas.
Em instantes o tropel de cascos atravessa o centro da pequenina cidade, deixando o perímetro urbano pelo precário caminho que levaria ao lendário povoado São João do Jansem.
Montado no burro preto estradeiro, o tropeiro madrugador tocava a cavalgada posicionado no ultimo lugar do comboio.
Em fila indiana subindo morros e descendo vales, cortavam o lamaçal dos caminhos entre plantações, roçados e capoeiras. Sempre que algum lerdo animal ousava atrasar a caminhada ou tomava rumo contrário ao destino imposto, ouvia-se o aboio sertanejo solitário, seguido do estalo ferino da pinhola cortante.
Os contornos da sonolenta Ipixuna já ficara distante, e em série, povoados do caminho eram deixados para trás. Necessário se fazia apressar a marcha, pois nem mesmo atingira um terço do percurso e a água começara a desprender dos céus.
O trajeto passara a ser intercalado. É que mesmo branda, a chuva corria torrencialmente. Vez e outra, quando São Pedro abrandava as torneiras, o condutor interrompia a marcha para reajustar as cargas, na encosta dos arvoredos que margeavam o caminho. E assim, seguia o itinerante solitário, vez e outra, interrompido seu silencio pelas saudações amistosas de raros transeuntes.
Cessada a longa chuva, a tarde se despede. Há pouco, acabara de vencer o volumoso igarapé da Santa Emília, transbordando aos borbotões.
Já era possível avistar à distância, as primeiras casas do arruado. O itinerário felizmente exauria-se. Em pouco tempo estaria encerrada mais uma jornada.
Inácio não fugira aos costumes e hábitos, próprios dos serviçais do seu gênero. Afinal também era de carne e osso. Não resiste a tentação. E assim, resolve dar uma paradinha no último boteco do percurso da estrada, para molhar a garganta, seca de tanto bradar nos solavancos da labuta.
Fagueiro, apeou-se, amarrando o cabresto num mourão de sapucaia do frexal da taberna. Em ato continuo, toma pelo estorvo a burra preta estradeira, e com um tapa cordial em sua anca, tange-a no sentido de casa, fazendo ser seguida pelo restante do comboio, ficando consigo apenas o burro de sua montaria.
Era gesto corriqueiro de Inácio. A cada retorno de jornada como aquela, costumava liberar a tropa, que por instinto próprio, seguia para casa sem a sua companhia. Ocasião em que tomava o último aperitivo da viagem, trocando um dedo de prosa com os parceiros, contando as boas novas das andanças. Pouco tempo depois, estaria a concluir o trabalho, arriando as cargas e prestando as contas com o severo patrão.
Entre um conhaque e outro, sob um falatório descontraído com amigos que ali bicavam uma terrestre, os minutos foram passando, até
que, o serviçal resolve encerrar a tarefa do dia, tencionando logo voltar à rodada de descontração. É que, o fim de semana começara.
Com um “até já”, deixou o local, tomando a rédea do burro, saltando de um só pulo, sobre o dorso e a galope apressou para ajudar a criadagem no arriar da carga dos animais, que certamente o aguardava frente a casa grande do comércio da fazenda.
Juntou-se à turma que já descia o carregamento. E quando os trabalhos seguiam em curso, eis que, deu-se pela falta da burra estradeira comandante da tropa.
Em instantes, vários homens se dispersam na procura do animal que passara a ser dado como desaparecido. As buscas progridem até que a escuridão da noite impede os trabalhos, que são suspensos, com a determinação de sua continuidade, no raiar do sol do dia seguinte.
Deu-se a mais mal dormida dentre as noites.
O dia mal tinha raiado, e Deodato Sampaio, patrão de Inácio, possesso, fumando obsessivamente, espumava pelos cantos da boca, proferindo impropérios. As horas fluíam e com elas os brados ameaçadores ensurdecia o infeliz empregado. Dizia-lhe: Caso sua estimada burra com a valiosa carga tivesse sido roubada e não aparecesse, o pobre tropeiro iria pagar caro por tamanha irresponsabilidade. Pagaria, nem que fosse com a própria vida, se não apresentasse recurso financeiro para tal.
Os bravejos e as ameaças atuavam nos ouvidos do aflito empregado, como um forte furacão que passa sibilando o frágil teto de um barraco, prestes a se desmoronar com o vendaval. E não era pra menos. A fama do potentoso fazendeiro, pela sua arrogância e destempero, corria os quatro cantos do município. Por ser violento e vingativo, ninguém se atrevia duvidar que as ameaças do troglodita enfurecido não fossem cumpridas.
Passava do meio dia, quando chegou um comunicado na casa do patrão, dando conta de uma notícia deixando-o, ainda, mais nervoso. A burra desaparecida enfim fora encontrada.
Um vizinho de propriedade soubera do ocorrido, e quando se deslocava para a casa de comercio de Deodato para inteirar-se dos fatos, pega um atalho margeando um córrego que interceptava a estrada há centenas de metros do povoado. Em certo trecho do percurso depara-se com o animal de carga, morto, por ter se afogado nas águas do igarapé.
Ocorreu que, na tardinha do dia anterior, ao passar pela travessia do córrego, a burra, com o peso da carga, se desequilibrou, sucumbindo nas aguas correntes. Agora com o nível normalizado foi possível se vislumbrar o cadáver do animal, que ainda trazia atrelado a si, a cangalha com respectiva carga intacta. Porém, degradada pela umidade.
Quando Inácio retorna das buscas para apresentar mais desculpas ao proprietário pelo sinistro ocorrido e buscar uma forma amena de ressarcir as perdas, encontra-o, ainda mais enfurecido e incontrolável.
Sem mais argumento a ponderar, humilhado e reduzido a traste, acocorado no recanto da calçada alta, o desolado tropeiro, com as mãos trêmulas comprime a face, num esboço por clemencia. De súbito, ouve-se um estampido surdo, seguido por um impacto fulminante que transfixou a
cabeça da pobre criatura, projetando-lhe o corpo para trás, que bruscamente desaba.
Sem brilho, seu olhar se perde num alvo fixo e imaginário. Agora lívido e liberto do pavor e da angústia, não vislumbra mais, a figura arrogante do seu algoz, antes patrão, que num gesto de glória insana e convicto da impunidade, oculta a arma assassina. Em seguida, enche o pulmão e deixa o local da cena como se tivesse praticado um ato de simples banalidade, num acerto de conta qualquer. Enquanto numa ação covarde, mais um “pobre diabo” deixa a existência, naqueles tempos bravios, não muito distantes, em que o poder financeiro suplantava a tudo e a todos. Mais, bem mais escancarado, do que vivenciamos nos dias atuais.
Passaram os anos. E o tempo, senhor da razão, com seus saltos e sobressaltos, encarregou-se do destino do desalmado patrão, pontuado pela degradação do seu patrimônio material e o desgaste de sua frágil saúde.
Josafá Bonfim – São Luís MA, 17 de agosto de 2012