PAI CÁSSIO
♫ “... Eu não sabia que doía tanto uma mesa num canto, uma sala e um jardim. Se eu soubesse o quanto dói a vida, essa dor tão doída não doía assim. Agora resta uma mesa na sala e hoje ninguém mais fala do seu bandolim. Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim!...” ♫
Que música linda! Letra maravilhosa do compositor Sérgio Bittencourt. Sempre que ouço essa música, lembro-me de meu pai. Não! Meu pai não morreu! Dei a impressão de que ele morreu? Não morreu nem vai morrer nunca, mas lembro com saudade do meu tempo de criança quando escutávamos essa música e nos emocionávamos muito.
Ele é meu herói. Será que posso chamá-lo assim? Essa frase já está muito batida, maçante, comum, “água com açúcar”. Não gosto dessas frases feitas e repetidas incansavelmente. Prefiro dizer que ele é meu espelho. Desde pequena sempre o tive como um espelho; queria ser uma cópia perfeita dele, imitá-lo em tudo, pois tudo o que fazia, para mim estava perfeito; ninguém podia contrariar, nem eu. São tantas qualidades que quase não consigo enumerá-las: supercorreto, sério, leal, inteligente, estudioso, honesto acima de tudo. Isso é o que sempre mais me agradou: sua honestidade. Poderia – e ainda posso – colocar minha mão no fogo quanto a sua honestidade. Uma resposta que gosto de dar – e que aprendi com ele – quando alguém me fala, por exemplo: “Por que você não pegou aquele objeto (ou aquele dinheiro) para você?”, eu respondo toda cheia de felicidade: “Simplesmente porque não era meu.” Ah! Como adoro isso!!! Esse prazer que sinto em fazer as coisas certas, em procurar ser sempre correta, aprendi com ele: meu pai Cássio Possas.
Às vezes não consigo acertar no alvo. Tudo bem, mas tento. E todas as vezes que consigo, sinto um orgulho muito grande de ser filha dele, de por ele ter sido educada, cuidada e nele ter me espelhado. Sei que já cometi erros, afinal ninguém é perfeito (já estou falando frases repetidas e maçantes), mas tento olhar para esse “espelho” e fazer tudo o que aprendi com ele.
Magro, estatura mediana, cabelos lisos pretos (agora já grisalhos), olhos tristes e nariz comprido, ele era uma pessoa muito séria, não posso dizer carrancudo como o personagem Dom Casmurro de Machado de Assis, mas lembro de que o vi sorrir muitas vezes, rir muito poucas vezes e quase nunca gargalhar! Não sou psicóloga, não sei descrever e entender seu comportamento, mas também não quero fazer isso. Não é esse o objetivo. Só sei que meu pai tinha uma maneira séria e compenetrada de viver e que eu o adorava por esse seu jeito! Talvez porque tivesse muitas responsabilidades, uma família para cuidar, etc. É lógico que seu modo sisudo foi resultado de sua criação, que vou detalhar agora.
Foi criado na zona rural do Rio Grande do Sul, no 7˚ Distrito de Pelotas, RS, chamado de Rincão da Cruz, por meu avô Walter de Lima Possas – de família espanhola – e minha avó Anna Kickhofel – de família alemã, fervorosos católicos, juntamente com seus irmãos: Ana Aldah, Carmen e Valter. Esse último – tio Valter – não o conheci ou, se conheci, não me lembro dele, pois era criança quando faleceu com cerca de 24 anos, com problemas pulmonares.
Meu avô Walter atendia as pessoas que o procuravam, com remédios e chás que ele fazia com plantas medicinais. Não havia médico naquela região. Se precisassem de um, teriam que ir até as cidades de Canguçu ou Pelotas, percorrendo muitos quilômetros de estrada de chão. Então meu avô atendia como podia. Minha avó cuidava dos serviços da casa, dos filhos, da horta, jardim e ainda cuidava da pequena lavoura. Quando muito jovem, meu pai foi enviado ao Seminário em Pelotas, para estudar e tornar-se padre. Aos 18 anos teve que se apresentar no quartel e foi servir ao Exército em Rio Grande, RS. Ao seminário não mais voltou.
Então, imagino que essa sisudez tenha sido forjada na infância, com sua educação familiar austera, na juventude, com muitos estudos no seminário, e na mocidade, devido à exigência de comportamento rígido militar.
Muito estudioso, gostava muito de ler – e esse gosto pela leitura foi a mim transmitido. Em relação aos estudos no seminário, abro agora um parêntese que gosto muito de lembrar e contar para todos: lá meu pai estudou latim e outros idiomas. Então, para exercitar seu aprendizado de grego, criou e traz sempre consigo até hoje uma agenda com várias piadas escritas em português, mas no início de cada uma delas coloca em grego a palavra principal da piada, a palavra-chave, para facilitar a consulta. Isso é motivo de orgulho para mim; fico imensamente feliz quando nos reunimos aos domingos para fazer um churrasco e ele “puxa” sua agenda cheia de piadas e mostra para meus amigos que elas estão catalogadas em grego.
No quartel conheceu minha mãe. Como assim? Como a conheceu no quartel? O que minha mãe estava fazendo lá? Estranho isso, não? Mas a estória que sei é que ele ficava de serviço na guarita e ela passava diariamente por aquela calçada. De tanto passar por ali, conversaram, fizeram amizade e numa dessas conversas ele contou que adorava pudim de leite. Então, uma tarde, minha mãe fez um pudim de leite e levou até a guarita do quartel para ele. Aí começou um grande amor (e aí terminou a “carreira” no seminário).
Ficou em Rio Grande onde casou, teve seis filhos e trabalhou como contador numa cooperativa e em várias indústrias de peixe, contador e gerente em uma loja de roupas e professor de português. Trabalhava o dia inteiro, mas ia almoçar em casa. Essa era uma rotina quase sagrada: almoçar em casa com a família reunida. Esse é mais um dos aprendizados de que manifesto um alto apreço.
À noite, fazia faculdade de Letras (enquanto minha mãe fazia faculdade de Direito), que para ele era como se fosse uma continuidade de seus estudos do seminário ou um aperfeiçoamento. Isso também faz com suba o conceito e o valor que tenho por ele.
A vida não era fácil porque o salário era pequeno. Então, para economizar, ia a pé para o trabalho. Caminhava cerca de 25 quarteirões para ir e mais 25 para retornar para casa. Ele conta que seus sapatos gastavam na parte de baixo e, para cobrir o buraco, colocava uns pedaços de papelão por dentro do sapato, para tentar que eles durassem mais um pouco.
Quando eu tinha cerca de cinco anos de idade, comprou uma lambreta e eu adorava quando chegava em casa e me levava para dar uma voltinha com ele.
Nessa mesma época, também lembro vagamente de um caso sério: minha mãe estava passando cera no piso de parquet da sala, quando a cera acabou. Então meu pai pegou a lata de cera e a levou ao fogão para derreter o restinho que ficava nos cantos da lata, mas como é inflamável, a cera pegou fogo que veio todo em sua direção. Os cabelos do seu peito pegaram fogo, ele saiu para a rua correndo, jogou-se no chão rolando; minha mãe abafou o fogo com um cobertor. Não sei se aumentei a verdade dos fatos, mas lembro das queimaduras do seu peito.
Uma das broncas de meu pai comigo era porque eu respondia grosseiramente ao chamado de minha mãe: “Quê, mãe?” – eu gritava de longe. O correto era eu largar tudo o que estivesse fazendo, correr para minha mãe e falar: “Pronto, mãe. A senhora me chamou?”. Lembro que uma vez meus pais estavam na cozinha e eu, no quarto. Quando eles olharam para o pequeno pátio da casa, eu lá estava. Aí meu pai falou: “Como a Simone está na rua se ela não passou aqui pela cozinha? Já sei: ela subiu na poltrona e pulou a janela do quarto!” Aí ele ficou muito indignado com essa minha atitude, correu atrás de mim, baixou meu short e deu uma palmada no meu bumbum. Lembro que chorei, mas não dei muita atenção ao fato; passado certo tempo, porém, minha mãe veio olhar meu bumbum e falou: “Nossa! Mas ainda está com a marca vermelha da mão; dá até para ver direitinho a marca dos dedos!!!!” Criança faz cada uma que até parece duas (esse é aquele tipo de frase feita de que não gosto, mas até que é verdadeiro).
Quando a família aumentou – e consequentemente as despesas também – foi dar aulas de português, à noite. Como as finanças melhoraram um pouco, comprou uma quota de consórcio e foi pagando as prestações. Numa noite ele chamou minha mãe: “Hoje à noite tem reunião do consórcio onde as pessoas irão dar lance e haverá sorteio. Tu poderias dar uma arrumada nas crianças e a gente dava uma passeada até lá no centro da cidade.” E fomos a pé até a concessionária. Depois de muita falação passou-se ao sorteio e meu pai foi contemplado com uma Brasília zero quilômetro, cor bege. Ele sorria e nós gritávamos de alegria! Foi a primeira vez que meu pai comparecia ao sorteio e já saía contemplado! A alegria foi maior também porque meu pai não precisaria mais ir trabalhar a pé!
Ele já havia comprado a lambreta, o Henry Junior e um fusca 1300 (cor: bege, placas: 3333), mas todos eram usados! Carro zero quilômetro era a primeira vez!
Outro fato que nunca esquecerei: com 18 anos (já fazia o curso de Letras, na FURG-Rio Grande) tive uma briga com meu noivo. Estava em casa, chorando pelo rompimento do noivado. Meu pai percebeu, aproximou-se e perguntou se eu queria dar uma volta para conversarmos. A vontade que eu tinha era dizer que nada adiantaria porque qualquer coisa que ele dissesse ou aconselhasse não iria diminuir minha tristeza, mas saímos caminhando pela rua. E aí ele me disse uma coisa que foi um grande aprendizado: “Moni, tu está triste agora, mas daqui a alguns anos (ou meses, ou semanas ou até dias), te lembrarás deste fato e darás umas boas risadas.” Fiquei pensando nisso enquanto caminhávamos por cerca de apenas um quarteirão e percebi que ele tinha razão. Aí ele me perguntou se eu já queria voltar para casa, ao que respondi, suspirando fundo, com toda a certeza do mundo e quase sorrindo: “Sim, pai. Podemos voltar!” Já estava tudo resolvido! Não havia mais nada em que pensar, mais nada com que me preocupar. Aquela tristeza que estava a me consumir era apenas um instante de minha vida, a qual seria maravilhosa!
Em 1983, meu pai recebeu o convite de seu amigo e colega do Curso de Letras, Sr. Roberto Sumiu Kozimizu (in memorian), para trabalhar como contador no Hotel Jandaia, em Campo Grande, MS. Então, na metade do ano veio à capital sul-mato-grossense para reconhecer o ambiente, procurar uma casa para alugar e no final do ano foi buscar sua família no Rio Grande. Para nós foi uma surpresa muito agradável ao chegarmos aqui, porque relacionávamos o Estado de Mato Grosso do Sul com o Pantanal, índios, jacarés, cobras e onças! E aqui estamos até hoje!
Após trabalhar muito anos no Hotel Jandaia, fez concurso para a Secretaria de Fazenda do Estado. Aprovado, foi trabalhar como agente tributário estadual. Aposentou-se, comprou uma chácara na área rural de Terenos, distante de Campo Grande apenas uns 20 quilômetros, chamada de Planalto Verde.
Nessa chácara, relembrou seu tempo de morada na zona rural lá de Pelotas, pois a transformou numa excelente moradia e ponto de encontro de todos os familiares e amigos. Fez horta; plantou mais de cem mudas diferentes de espécies frutíferas, flores, ipês (árvore símbolo do MS); construiu um pequeno lago; cuidou de galinhas, patos, coelhos e cachorros; fez festas, churrascos e amizades. Ali vivia tranquilo com minha mãe e minhas duas irmãs solteiras, até que foram assaltados.
Eram cerca de 23 horas. Dois moleques invadiram a casa pela janela de um dos quartos de solteiro. Cortaram a tela contra mosquitos e entraram. Não havia grades nas janelas. Meus pais estavam sozinhos. O carro estava na garagem e os cachorros não latiram.
“- Negro, tem alguém aqui dentro do quarto”, sussurrou minha mãe para meu pai, quando já estavam deitados. O quarto estava muito escuro; não dava para ver coisa alguma. Meu pai olhou para o lado e só viu o brilho prateado da lâmina da faca. Pulou da cama e conseguiu empurrar o marginal para fora do quarto do casal. Nesse empurra-empurra recebeu um corte no antebraço. Depois trancou a porta do quarto e foi para o banheiro da suíte com minha mãe. Ali permaneceram trancados, encolhidinhos, cansados, mas protegidos, até clarear o dia. Tinham receio de abrir a porta e se depararem com o ladrão - ou ladrões, pois não sabiam quantos eram e se ainda estavam dentro de casa.
Por volta das 7 horas, minha irmã Sibele (casada com o Élcio, mãe de dois filhos), que mora numa chácara quase em frente a casa de meus pais, chegou como fazia diariamente, abriu o portão grande (ela tem cópia da chave) e foi entrando. Ao passar ao lado da janela do banheiro da suíte do casal, escutou a voz do meu pai: “- Bele, volta! Sai correndo! Fomos assaltados! Chama a polícia!” Foi o que ela fez. Rapidamente a polícia de Terenos chegou, mas os assaltantes não estavam mais lá. Levaram um aparelho de som 3 em 1 e deixaram muito susto e terror. O objeto com brilho prateado que cortou o braço de meu pai foi uma faca de pão que estava em cima da mesa da cozinha.
No dia seguinte estava toda a família reunida: filhos, genros, nora e netos vindos de Campo Grande para saber com certeza o que havia ocorrido. Foi muito triste ver meu pai contando os fatos com um curativo no braço. A partir daí, tomado de um pânico plenamente justificável, não queria mais morar na chácara que ele formara e de que cuidara por tanto anos. Queria vir embora para a cidade de Campo Grande a fim de comprar uma casa mais segura – e assim o fez.
Hoje ele cuida de minha mãe, na cidade, com enorme zelo, carinho e amor! Seus cabelos já estão grisalhos, continua magro e adquiriu uma pequena protuberância no seu abdômen (barriguinha supérflua). Não está mais tão sério quanto era na minha infância. Com o tempo ficou mais maleável, sorridente, alegre – e meu amigo!