o gato e o muro

pela janela do meu quarto eu tenho uma vista privilegiada: o muro que separa minha casa da casa do vizinho. um muro velho, que do meu lado está até conservado, considerando a época em que foi construído e que foi reformado somente uma vez. o muro está ali parado, permanece assim desde que foi erguido, acredito eu. tem dias que juro, parece que ele está mais próximo, como se tivesse vida própria e se aproximasse cada vez mais de mim, se fechando ao meu redor, me deixando sem ar. mas acredito (e espero) que seja somente impressão minha.

deitei sobre a minha cama e olhei pela janela, lá fora passeava um gato. pelos brancos, patas e orelhas meio amareladas. estava em cima do velho muro. andava de um lado para o outro. em um momento me fitou com seus pequenos olhos castanhos, segundos depois voltou a percorrer seu longo caminho em linha reta.

pensei em como aquele gato se parecia comigo, ali, aparentemente calmo, analisando as possibilidades. pensando para qual lado do muro se arriscaria a descer.

pensei nas sete vidas daquele gato. e se eu também tivesse sete vidas? e se eu também somente caísse em pé? ah, que bom seria! se bem que não seria muito agradável saber que eu ainda teria seis vidas monótonas pela frente. ou, quem sabe, as seis seriam diferentes dessa? há várias possibilidades na vida de um gato, certo? alguns moram nas ruas, outros em mansões sendo tratados como verdadeiros reis. alguns, pobres coitados, sofrem a crueldade dos humanos, mas outros são livres, passeiam pelas ruas e aparecem em casa somente quando a fome aperta. seria legal ter seis vidas livres, eu acho.

o gato se foi. de onde eu estava não conseguia mais vê-lo. pensei em mim. eu estava em dúvidas. sempre fui a personificação da incerteza. na verdade mesmo não sei mais dizer se aquele gato e eu tínhamos algo em comum. talvez ele quisesse apenas estar ali em cima do muro, passeando. talvez ele também quisesse apenas ter uma visão privilegiada das coisas. talvez nem quisesse descer, preferia ficar ali observando de cima.

não, o gato e eu nada tínhamos em comum. acho que se algo naquela cena toda se parecia comigo era o muro. estático. solitário, ali, naquele mesmo lugar desde não sei qual data. não faz nada, não fala nada. a única propriedade que possui é a inércia. em alguns raros momentos se movimenta, ou talvez seja impressão de quem vê de longe. permanece sempre no mesmo lugar. alguns se aproximam dele de vez em quando, mas logo se afastam, sempre se afastam, é a lei.

talvez eu seja mesmo o muro, que está ali somente para dividir. separar. nunca para juntar as coisas. nunca para unir.

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