O Dia Em Que Conheci o Cara Que Viu Chat Baker Cantar "My Funny Valentine"

Fui a uma feijoada aqui no Rio, em Rocha Miranda, numa escola municipal. Acho que em 1980 e poucos. Aparentemente nada a ver com a Califórnia de 1952. Nem mesmo o californo. Confesso que fiquei impressionado logo que o vi. Sabia muito bem que não estava na presença do enigmático trompetista. Talvez eu preferisse dizer pistonista. Nada tinham em comum. Então pra quê aquela babaquice de me deixar impressionar? Só porque ele tinha presenciado uma exibição do incomparável Chat Baker?

Tinha sido informado de que o velhinho, quando mais jovem, vivera por algum tempo nos EUA. Além da idade agora, 84, ele era baixo, pele morena e usava um bigodinho que lhe daria certamente a aparência, quando mais novo, de um mexicano. Por isso, como disse, nada a ver com o Chat, provavelmente mais alto, pele clara e sem o bigodinho.

Claro que não fui logo com aquela pergunta óbvia: “Quer dizer que você viu e ouviu o grande Chat Baker tocando ‘My Funny Valentine’"?

Fui apresentado a ele pela professora da escola que organizara a feijoada. Ela sabia da minha preferência por jazz, qualquer tipo de jazz, e conhecia alguma coisa da vida do velhinho. Pediu-lhe que me deixasse ocupar uma das cadeiras da sua mesa e ele não se importou. Viera como o responsável pela sua neta, que cursava a quarta ou quinta série e que estava rondando pela escola com as amiguinhas e dando pouca bola para a comida.

Já havia feito o meu prato junto ao balcão com as vasilhas da feijoada e sentei-me à mesa. Observei que ele parou sua refeição para me cumprimentar. Preferi começar falando da feijoada, após as primeiras garfadas.

- Muito bem temperada, não acha?

- Sim, bem agradável. Embora a gente já saiba que não deve abusar.

- Acho que nós, moradores do Rio, não nos importamos com a temperatura quando se trata de feijoada. Frio ou calor, estamos lá.

- Somos meio indisciplinados mesmo.

- Ou será mais uma questão cultural?, fiz a pergunta ciente do risco de não me dar bem.

- Pode ser. Contudo, desculpe-me a franqueza, a gente tem às vezes a mania de achar que tudo pode ser uma questão cultural.

- O senhor tem razão. Talvez tenha a ver mesmo é com o sabor. Pelo menos pra mim, no inverno ou no verão feijoada é irresistível.

- Se quiser, pode deixar o “senhor” de lado. Ou lá em cima no céu. Mas é a verdade. Veja o caso da cachaça ou do vinho. Sabemos que são melhores no inverno. Demoram mais a subir à cabeça. Mas onde fica o sabor? Ou o vício? Serão questões culturais apenas?

Suas ponderações me impressionaram. Afinal tratava-se de uma pessoa de idade avançada. Percebi porque permitiram que ele viesse sozinho acompanhar sua neta. Além disso, trajava-se com certa elegância, favorecida pelo fato de ser magro.

Mas o que esperava mesmo era que a nossa conversa se dirigisse para o assunto música. Para que eu tivesse então a chance de fazer a pergunta que imaginei logo que vi o velhinho sentado à mesa.

- Tudo muito organizado por aqui. Várias vasilhas de feijão e os ingredientes próprios, arroz, etc. naquele balcão longo... Nem chegou a haver filas, o senhor percebeu? Mesmo com as pessoas tendo de se servir.

- A professora que organizou tudo trabalha bem.

- Trabalho com ela em outra escola. Conhecemo-nos há um bom tempo.

- Então você não é professor daqui.

- Não, Angélica me convidou porque sabe que gosto de feijoada e porque haveria a apresentação do coral da escola e ela sabe que é coisa que também aprecio.

- É, mas parece que não teremos mais o coral. O ar condicionado do auditório pifou.

- Que pena. A música seria um belo complemento ao evento, lamentei.

- Não discordo. Mas nesse caso, talvez fosse preferível um jogral dos alunos ou uma apresentação de prosa ou poesia. A música nem sempre discute. Às vezes é só um elemento prazeroso ou lúdico. E as pessoas precisam é de mais consciência. Ou menos alienação.

Nossa, eu via duas coisas: autoridade no que dizia ou posição definida e uma pá de cal no assunto em que eu esperava que nos aprofundássemos. Será que era proposital? Mas nós nem nos conhecíamos. Nem sabia que iria encontrá-lo naquele dia no almoço. Não acho que ele soubesse que eu tivera conhecimento da presença dele numa das exibições de um dos músicos que eu mais apreciava. Jazz não é um tipo de música que agrade a todo mundo. Mas podia ser que muitos já tivessem feito a pergunta que eu pretendia fazer e ele já estivesse de saco cheio de responder. Apesar de ser Rocha Miranda. Ele devia morar por ali. Mas o que é bom não tem a prerrogativa de só acontecer ou ser apreciado na Zona Sul ou na Barra. Em todo o caso, interpretei a última fala dele como sendo uma tentativa de retirar a música do trajeto que tomava a nossa conversa. De qualquer modo, o papo começava a ficar interessante. E reconheço que o meu preconceito não poderia ter admitido isso logo que fui ao velhinho apresentado.

- E a conscientização tem início mesmo com pouca idade, prossegui.

- Claro. É fundamental que a discussão inicie cedo. Trata-se do treinamento da mente para a atividade intelectual. É preciso que se aprenda a pensar desde pequeno. Que é quando chegamos e já encontramos tudo pronto. Só muito mais tarde, em geral, é que vamos perceber que aquele “pronto” precisa ser reconstruído ou reformulado.

- O senhor tem toda razão. Lembro-me de que, quando criança, escutei várias vezes em casa que o crime não compensa. Hoje, a partir da atuação dos nossos políticos, até mesmo presidentes da república, não sei se posso dizer que o que ouvia em casa seja verdadeiro.

Foi eu acabar de falar e surgiu de repente a netinha do meu novo amigo.

- Vovô, você não vai andar um pouco pela festa, não? Vai só ficar aí sentado?

- Minha querida, você já cumprimentou o moço aqui?

- Quem é ele?

- Faça você mesma a pergunta, meu bem.

- Quem é você, moço?

- Sou Marcos, o mais novo amigo do seu vovô, respondi encantado com a garotinha.

- Vovô, você nunca me falou dele.

- Claro, meu anjo, conheci-o agora.

- Bem, vocês fiquem aí que eu vou voltar lá pras minhas amigas, informou a netinha com uma desenvoltura de impressionar.

- Você já comeu, Silvinha?, perguntou o avô.

- Ah, quer dizer que seu nome é Silvia, hein?, indaguei eu. Mas você não me disse.

- E você disse o seu porque quis!

- Silvinha, o que é isso?, reclamou o avô, mas ela já tinha dado as costas e saíra correndo.

E eu fiquei sorrindo. Espirituosidade de criança é coisa de desconcertar até uma rocha.

- Que criança linda. E como é desembaraçada a menina. O senhor deve ficar todo bobo, observei, não escondendo a satisfação.

- É verdade. E todo dia é uma surpresa. É só a gente deixar que elas acontecem. Você viu como ela saiu correndo? É porque sabia que eu iria repreendê-la. Está sempre atenta.

- Sim, percebi que quando ela falava com o senhor, não tirava também os olhos de mim.

- E a reposta dela, que deve tê-lo deixado desconcertado, não teve a finalidade de o agredir. Foi só provocação. É aquilo – a marca feminina.

E eu ficava cada vez mais encantado por ele. Com a facilidade que tinha de, do alto de seus 84 anos, produzir aquelas explicações ou verbalizar um raciocínio talvez mais a altura de quem estivesse com 48 anos ou menos.

Mas então ele continuou:

- Bem, espero que não pense que é presunção minha. É possível que você não tenha se aproximado de mim para isso, mas se for o que estou pensando, pode fazer a pergunta que você desejava.

E aí eu soube de tudo o que queria e até então não tinha tido coragem de perguntar.

Rio, 12/12/2012

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 12/12/2012
Reeditado em 13/12/2012
Código do texto: T4032930
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