Autobiografia

1987. Flamengo e Sport reivindicam o título de Campeão Brasileiro de Futebol. Eu, que não tinha nada a ver com isso, apenas nasço. Desde aquela época que eu não sou Flamengo.

1988. Minha cabeça, enorme ao nascer, demonstra sinais de recuo. Aprovado o texto da nova Constituição. Ainda não falo e também não opino.

1989. Cai o Muro de Berlim. Dentro de mim, ainda não. Opero uma hérnia.

1990. Collor assume a Presidência da República. Mantenho silêncio a respeito. Estou protegido pela minha falta de consciência.

1991. Na companhia de uma amiga, pulo a cerca de uma vizinha e fujo na direção de um lago. A vizinhança se desespera. Alguém grita que ninguém está nos dando bola. Somos enfim resgatados. Fico decepcionado ao constatar que ninguém nos deu uma bola.

1992. Fim do período de encantamento. Começo a me dar conta que existo. Entro para o Jardim de Infância. Sofro em aulas de carpintaria. Participo de um desfile de moda com roupas dos pais. Pinto um vaso para minha mãe. Tenho meu primeiro amor platônico.

1993. Aprendo a ler antes dos outros. Decido que o meu ideal de vida consiste em descer o tobogã de um parquinho ao lado da sala de aula. Danço quadrilha na Festa Junina da escola pela primeira vez. Danço quadrilha na Festa Junina da escola pela última vez.

1994. É tetra! É tetra! É tetra! Conquisto o meu primeiro título mundial de futebol. Ayrton Senna morre enquanto eu brinco de carrinho na casa do vizinho. Uso radiografias velhas para observar uma eclipse total do sol. Espero o Natal já a partir de setembro.

1995. Como maionese estragada. Bato a cabeça num poste. Arranco as amígdalas. Ganho uma bicicleta de marcha. Na véspera de Natal, estreio um par de tênis que acende luzinha. Aviso meu tio que estou participando do Natal Luz. Escrevo um bilhete para Deus.

1996. Dúvidas me atormentam. Leio "E se todo mundo tivesse rabo?". Comento com meu amigo que os Mamonas Assassinas já não faziam mais tanto sucesso. No outro dia, morrem os Mamonas Assassinas. Apaixono-me pela vizinha. Esqueço tudo e vou jogar Super Nintendo.

1997. Pego catapora. Coço algumas feridas e fico com marcas eternas. Consigo o Tazo de número 80. Passo a fase "Tubular" no Super Mario World. Ouço grupos de pagode, mas sem sequelas. Perco a minha primeira partida de futebol de botão. Ganho a revanche de 11x1.

1998. Leio livros de suspense. Converso com o mesa-tenista Cláudio Kano, já falecido, e sou convencido de que levo jeito para o esporte. Compro uma raquete de R$ 1,99. Perco a Copa do Mundo pela primeira vez. Descubro que sou o novo Denílson, o jogador do São Paulo.

1999. Mexo em um computador. Acesso a Internet. Olho para o relógio às 9 horas, 9 minutos e 9 segundos do dia 9/9/99. Começo a falar inglês. Participo de um campeonato de xadrez na escola e quase ganho medalha. Jogo três partidas e perco as três. Termino em quarto.

2000. Saio do meio do mato e vou morar na cidade. Hormônios masculinos começam a exigir espaço. Vejo o mar pela primeira vez. Caio nas pedras pela primeira vez. Tenho a minha primeira paixão não-platônica. Descubro bandas de rock dos anos 80. Escrevo péssimas poesias.

2001. Passo a manhã do dia 11 de setembro numa aula de música. Toco violão terrivelmente. Um verdadeiro atentado. Simpatizo-me com Kurt Cobain. Visto por alguns minutos uma camisa do Nirvana na escola. Sinto-me rebelde. Formo uma banda de rock imaginária.

2002. Acordo às três e meia da madrugada para ver as partidas da Copa. Alterno notas 3 e 10 nas aulas de Matemática. Começo a ouvir Engenheiros do Hawaii. Desenho engrenagens no caderno da escola. Mantenho dura oposição ao governo Bush.

2003. Leio Dom Quixote e Machado de Assis. Sou atropelado de bicicleta. Todo ralado e com a bicicleta destruída, levanto-me e vou à aula de inglês. Apaixono-me perdidamente. Incorporo Manoel Tobias numa partida de Futsal realizada no dia do meu aniversário.

2004. Passo a ter computador em casa. Mudo radicalmente a minha vida. Descubro um artigo sobre árvore genealógica. Mudo radicalmente a minha vida. Leio um livro de Rubem Braga. Mudo radicalmente a minha vida. Apaixono-me perdidamente duas vezes.

2005. Fujo para Curitiba. Faço Jornalismo com a desculpa de que gosto de escrever. Tento reescrever todas as crônicas de Rubem Braga. Faço amigos que nunca cheguei a ver. Passo o Reveillon ao lado de uma família que me era totalmente estranha. Incluindo a minha namorada.

2006. Cultivo amores virtuais. Alguém elogia minha voz e viro locutor de rádio-web. Apresento um programa de rock e acredito piamente que sou Mr. Pi. Anulo um voto pela primeira vez. Vejo o Paraná Clube ser campeão estadual. Passos os dias em casa procurando emprego.

2007. Perco meus dois avôs no intervalo de um mês. Arrumo um emprego perguntando às pessoas se elas têm medo da violência. Não ganho nada. Conhecimentos rasos em diagramação de jornal me garantem um estágio. Ganho dinheiro pela primeira vez e parece-me injusto.

2008. Rompo com a escola relativista. Tenho aulas de religião com um professor ateu. Ganho dez anos de experiência trabalhando em um hospital. Fotografo gente morta. Transformo Rubem Braga em tabelas. Ouço meus professores discutirem meu futuro. Viro jornalista.

2009. Sou assaltado, e pela primeira vez não foi o Governo. Entrevisto alguns dos famosos mais velhos de Curitiba. Desisto de me apaixonar. Apaixono-me perdidamente. Mando 200 currículos em dois meses e não consigo emprego. Moacyr Scliar me chama de culto e simpático.

2010. Fujo para Brasília. Viro cristão. Passo o aniversário no Espírito Santo. Moro sozinho e lavo a louça todo dia. Emagreço cinco quilos. Ando de avião. Circulo entre deputados e senadores. Confiro pessoalmente que o presidente Lula têm mesmo nove dedos nas mãos.

2011. Acredito em psicólogas. Acompanho um debate cercado de índios armados que tem a minha empresa como inimiga. Descubro os segredos do cego de Betsaida, inclusive que não nasceu cego. Reescrevo Nelson Rodrigues. Aperfeiçoo meus livros de história.

2012. Subo a rampa do Planalto. Canso-me na metade. Reconheço que preciso voltar a ser menino. Descubro que ler verdades em inglês é uma boa maneira de superar um coração duro. Copio a ideia dessa biografia de um texto de Paulo Mendes Campos.

2013. (continua)

milkau
Enviado por milkau em 12/12/2012
Reeditado em 12/12/2012
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