ORLANDO EM UM DIA

Ele entra no pequeno apartamento andando em largas passadas das suas poderosas pernas treinadas em triatlo, tentando equilibrar duas sacolas de supermercado. Deixa os pacotes na bancada, enquanto o celular toca insistentemente. Não podia atender, mas o aparelho transmite-lhe sua urgência.

Atende e o diálogo entremeado de palavras carinhosas, um encontro marcado, deixam-no animado.

Foi um dia brabo no escritório. Desaperta a gravata que é obrigado a usar por imposição do cargo ocupado. Leva o cachorro pra sua área e vai para o banheiro. Olha-se no espelho e a figura devolvida, mostra cansaço e um que de irritação, enquanto passa a mão no queixo bem escanhoado. Como aquilo dá trabalho. Faz uma careta.

Entra no chuveiro. Demora, e canta sabendo que é desafinado, mas animado com a noite que se aproxima.

O micro-ondas apita ele corre pra comer seu espaguete de caixinha. Que jeito? Ri lembrando saudoso da mãe que jamais concordaria com esse cardápio; um sulco se forma na sua testa lembrando do pai e suas posturas. Sai do banho. Descansará um pouco após o jantar.

São vinte e duas horas e ele percebe que cochilou diante da Tv. Levanta-se e sabe que tem muita a fazer pela frente.

Nem a prática dos longos anos vivendo essa realidade, deixa-o tranquilo. Senta-se calmamente diante do espelho imenso do seu banheiro. Quando chegou do serviço e foi para o banho era só uma pessoa cansada após um estressante dia de trabalho. Se tivesse um tanque com lata, ele banharia do mesmo jeito sem olhar para os lados.

Agora, é outra pessoa, que se senta àquela mesa de camarim. Fecha os olhos, veste, encarna, assume esse outro ser, antes de abrir os olhos e começar o trabalho.

Reabre os olhos e meticulosamente pega os potinhos, bisnagas e frascos e os enfileira diante dele; abre a bolsa de pincéis e faz o mesmo. Os gestos econômicos, e estudados, tem a função de ajudá-lo a compor essa personagem, ou mais, essa nova pessoa.

Quarenta minutos depois, levanta-se com gestos suaves e sua figura alta e longilínea se move pelo quarto com toques felinos. Veste-se calmamente e e abaixa-se para abotoar as sandálias. Ergue-se e do alto de seus 1,86 contando as sandálias, sabe que é uma figura poderosa, inimitável. Pega a carteira, o celular, dá uma última olhada no espelho enquanto ajusta aliga que prende as meias pretas com costura nas pernas belas e fortes.

Resoluta e leve como se flutuasse, desce as escadas.

O porteiro a cumprimenta com delicadeza e ela, retribui com um sorriso encantador.

É Ana, simplesmente Ana, bela, única e poderosa, o homem que chegou do trabalho cansado, ficou no chuveiro.