Vida de cão
Vida de cão
Para aqueles que consideram os cães criaturas inferiores, brinquedinhos sem pilha, não se detenham nas minhas lucubrações. Para os outros milhões que os entendem como seres especiais, posso falar sem reservas.
Ontem me despedi do mais fiel, sincero e amado amigo, após quase treze anos de convívio pleno de emoções, mais de um quarto de minha existência até então.
Posso afirmar que, desde o primeiro sorriso trocado entre nós até seu triste fim, nunca me foi me sonegado um átimo sequer de sua infinita alegria e de seu incondicional amor, ao que sempre lhe retribuí, mas à moda humana, com menos salamaleques, mas não menos intensidade.
Tivemos noites maldormidas em seus eventuais mal-estares e noites insólitas em que restamos abraçados em minhas chegadas louváveis de porre. Houve também noites suaves, seguidas por dias fantásticos em companhia mútua. O olhar triste a cada até-logo se apagava de todo nos reencontros festivos.
Acho que pouca gente me entendeu tão profundamente. Sem uma palavra sequer de sua parte, nossos diálogos foram profusos. Meu eventual mau humor pouco prosperou em sua presença. Como negar-lhe afeto?
Os cães são mesmo criaturas das mais fantásticas. Não é que morram cedo, é que vivem o bastante para não deixarem de ser crianças.
Agora seu canto está vazio; os panos, despachados; o quintal está limpo; sua panela, de boca para baixo; a guia de passeio, pendurada para sempre.
Embora tudo que ficará na lembrança eterna, na mais genuína memória emotiva, estes dias de dor da separação me custarão bastante ao convívio comigo mesmo. O sentimento que hoje me resta é de um imenso deserto.